05/06/2011

O Diabo é o pop na Indústria Cultural



A indústria cultural, na qual a indústria fonográfica é uma de suas faces, vem preencher a função de unificar elementos da "cultura popular", para em seguida integrá-lo em um sistema cultural mais vasto: o mercado consumidor. Com relação ao Diabo a operação é clara, ele foi extraído da religião (popular ou intelectualizada, pouco importa), e colocado, por exemplo, em disco como tema principal ou secundário das letras de canções, vídeo clips, shows, nome de grupos, etc.
Como isso começou? Após a Segunda Guerra Mundial a população jovem norte-americano aumentou de forma bastante elevada, principalmente devido a expansão econômica daquele país. Entretanto, apesar do progresso industrial, a sociedade norte-americana permaneceu com seus valores moralistas e preconceituosos.
Dentro deste contexto apareceu uma cultura própria dos jovens que refletia uma tendência comportamental que ia de encontro aos valores morais predominantes. Sua maneira de expressão configurou-se principalmente através da musica, fosse individualmente ou em pequenos grupos. Embora estivesse inicialmente fora dos padrões preconizados pela sociedade estabelecida, a cultura jovem de então passou a ser assimilada e comercializada pela indústria cultural – havia ai um amplo mercado consumidor a ser explorado.
É interessante percebermos que mesmo sendo comercializada pela indústria cultural, esta cultura juvenil passou a apresentar críticas das mais veementes à sociedade, sobretudo negando seus valores, numa tentativa de criar e vivenciar um estilo alternativo e coletivo de vida, de tal forma que fosse contra o consumismo, a industrialização indiscriminada, o preconceito racial, as guerras, etc. A reação desta juventude mais crítica e politizada, ainda que até então sustentada e explorada pela indústria cultural, passou a ser conhecida como “contracultura” Parece contraditório, mas mesmo agindo contra a indústria cultural, é através desta que esse movimento se expandiu e se deixou assimilar.
É indiscutível que o rock com seus ritmos acelerados e altissonantes tenha se tornado o símbolo desta contracultura, ou melhor, fonte para contestação e a ruptura da tradição musical do Ocidente, seja erudita, seja popular. A indústria cultural fez do rock uma de suas mercadorias mais valiosa, sendo usado como veículo de novas idéias, valores e sonhos, constituindo uma massa de adeptos informe e diversificada, estabelecendo um intercâmbio por cima das línguas, nacionalidades e raças.
Nos anos 60 o rock dividiu-se numa variedade enorme de estilos e linguagens. Essa multiplicação de estilos - que caracterizou principalmente o início dos anos 70 - pode ser explicada pela própria assimilação da indústria fonográfica de quase todos os sons arquitetados no final da década de 60, que foram reciclados a partir de uma tecnologia cada vez mais sofisticada. Destes estilos o progressive rock (rock progressivo) e o heavy metal (metal pesado) foram os dois que marcaram a primeira metade da década de 70. Influenciado pelo acid rock (rock ácido), estilo que procurava através de espaços musicais amplos e abstratos, e do emprego de estranhas sonoridades, reproduzir os aspectos auditivos, os climas e sugestões emocionais da experiência psicodélica com as drogas - o progressive rock acabou sendo um dos principais responsáveis pela vanguarda musical seguinte, seu apelo procurava fundir o jazz com a música erudita e levando o mais longe possível o desenvolvimento da eletrônica no interior da musica pop (o uso dos sintetizadores são o melhor exemplo).
O heavy metal por sua vez não usava nenhum metal (instrumento de sopro), era feito na base da força das guitarras amplificadas e distorcidas por toneladas de equipamentos. Originário também do acid rock e sofrendo a influência de guitarristas como Jimmy Page, Jeff Beck, Dave Edmunds, Eric Clapton, entre outros, os grupos Led Zeppelin, Black Sabbath e Deep Purple formam a base que concretizou este estilo.
Os anos de 1970 são marcados por um clima escatológico. O “fim do mundo” nunca esteve tão presente, sobretudo diante da ameaça nuclear e outras convulsões que marcaram aquela década. Foi nesse ambiente que a temática do satanismo, a partir do heavy metal, vai ganhar terreno, refletindo de certo modo as incertezas de uma década que começava. Mas é bom lembrar que a temática já se fazia presente no rock, só para citar um exemplo, a "Sympathy for the Devil", composta por Mick Jagger e que rendeu várias acusações de satanismo à banda Rolling Stones, é do álbum Beggar's Banquet, de 1968. Aconteceu que a partir de então nos shows a temática do Diabo é levada a tona de forma explicita e irreverente. O grupo Black Sabbath ( ou Cerimonia Negra) confessava ser o Diabo o senhor deste mundo. Entendendo o grupo que todos os jovens deveriam entregar suas almas ao Diabo. Em seus shows o conjunto costumava incitar a platéia a fazer um pacto com o ele, o Diabo. Já o grupo AC/DC fazia oferecimento de sangue no palco ao público presente. Um dos mais destacados em suas performances foi Ozzy Osbourne. Diz a revista Rock in Rio, editada em janeiro de 1985, que quando ele subia no palco era saudado como se fosse o próprio Demônio. Acrescenta a publicação: não é de hoje que Ozzy Osbourne é uma figura cultuada e ligada a ritos satânicos. Ele próprio foi fundador e vocalista da banda que era literalmente um rito satânico: Black Sabbath (Ozzi saiu da banda em 1979, seguindo carreira solo, a reportagem citada faz referência a esta nova fase de sua vida). A mesma publicação confirmou que Ozzy degolava animais no palco. “Hoje ele conseguiu o que queria. É o centro das atenções e o que leva toda a fama. Da mesma maneira que é visado pelo FBI, pela policia e por varias ligas religiosas que acham que durante os seus shows o Demônio é invocado mesmo, animais são sacrificados e mocinhas são violentadas”.
Desde o seu aparecimento o rock sempre teve como companhia a irreverência e, algumas vezes, a permissividade. Com ele a juventude repudiou valores em nome de comportamentos tidos muitas vezes como “modernos” e buscou maneiras novas de expor o que sentiam - começando a declarar de forma explicita o que sentiam em relação ao amor, ao sexo, a política, a guerra, a religião, etc. Assim que, com o advento do heavy metal propriamente, as musicas daí derivadas começam a fazer apologia ao amor livre, a libertação sexual, desde as praticas normais as mais aberrantes, valorizando a conspurcação total do homem, a violência, o abuso moral, etc. Por exemplo, uma de suas propostas visa levar a juventude a praticas sexuais que seriam consideradas vis e pervertidas pela sociedade: pedofilia, necrofilia, zoofilia, homossexualismo, etc. Paul Stanley, um dos integrantes do Kiss, por exemplo, gabava-se de suas proezas eróticas: “Você sabe o que temos recebido ultimamente? Cartas de adolescentes de 16 e 17 anos, com fotos em que aparecem nuas. É surpreendente! É genial! Não há nada como você saber que esta ajudando a juventude da América a se despir”. Os Rolling Stones tem um álbum intitulado “Necrofilia”. Alice Cooper canta uma música intitulada “Ala dos Mortos”, onde ele fala do seu romance com uma mulher morta. Al Jourgenson, vocalista do Ministry ( ou Sacerdócio), se intitulou “buck satan”(animal satânico) – caracterizou-se por enfeitar o palco com crânios e ossos de animais. Quando o grupo “começa o gospel hardcore (em) uma tela no fundo do palco são projetadas imagens de pessoas deformadas , acidentes de carros, todo tipo de barbaridade. Na platéia o mash acelera, cabelos voam nos ombros até encontrar pela frente uma intransponível barreira de seguranças. Os sete caras no palco quase não se mexem. É um espetáculo épico e ao mesmo tempo minimalista, robótico.”(revista Bizz ,dezembro, 1992).
King Diamond, líder do Mercyful Fate, proclamou-se satânista e nos seus shows além da maquiagem uma cruz invertida na testa. Suas letras esgotam a temática satânica. O espetáculo demoníaco não para por ai, se Ozzy mordia morcego de plástico nos anos 80, anos depois o pessoal do death metal levou a coisa mais a serio. Os componentes do Morbid Angel bebem o próprio sangue e Glen Benton, líder do Deicide, traz uma cruz invertida marcada a ferro na testa. “Deicide deu um jeito para se destacar levando ao extremo a mania de ser emissário do Diabo na terra. Suas letras de adoração satânicas conseguiram irritar terroristas, que lançaram uma bomba incendiaria no local em que a banda se apresentou no fim de 92, na Suécia... Benton ainda foi ameaçado de morte por um grupo inglês chamado Milícia Animal, após se vangloriar de torturar animais em uma entrevista ao semanário inglês NME. O Deicide canta e prega o extermínio da humanidade”.(revista Bizz, fevereiro, 1993)
Uma pratica comum entre os grupos de rock com um som mais pesado é colocar nome nas bandas que sugira, se não algo de demoníaco, pelo menos algo que choque ao ser pronunciado. Assim temos: Acid Storm (Tempestade Ácida), Alice in Chains (Alice Acorrentada), Annihilator (Aniquilador), Artillery (Artilharia), Bad Company (Má Companhia), Bad Religion(Má Religião), Blues Brothers (Irmãos Tristes), Brutal Truth (Verdade Brutal), Butthhole Surfers (Surfista do Cú), Death (Morte), Death Angel (Anjo da Morte), Die Toten Hosen (As calças mortas), Exhort (Exaltar), Faith no More (Fé nunca mais), Fear Factory (Fábrica de medo), Fight (Luta), Genocídio, Graveyard Train (Trem do Cemitério), Jesus Jones, Killers (Assassinos), Monstrosity (Monstruosidade), Obituary (Obituário), Sepultura, Slayer (Assassinos), Testament (Testamento, fazendo referência a Biblia), e por ai segue uma infinidade de nomes de grupo cuja proposta musical das letras que cantam vai deste a critica contra qualquer regime político ou contra a morte de crianças na Etiópia até o extermínio da humanidade, enquanto outros falam de namoros desfeitos pelos mais variados motivos, outros cantam falando de relações sexuais, etc. etc.
O processo de reprodução não se limita apenas aos espetáculos, se estende a discos, filmes, clips, roupas e acessórios. O que testemunhamos é que a apropriação de um bem religioso (o Diabo) segue o mesmo caminho das outras mercadorias produzidas por esta mesma empresa. Entretanto, em virtude de sua especificidade, novos elementos devem ser levados em consideração: o Diabo, elemento pertencente ao mundo das coisas sagradas, estando nas mãos de leigos cuja única finalidade é passar um produto, é transferido do mundo sagrado para o do puro espetáculo teatral. Ele que teria valor de culto passa a ter “valor de exposição”.
A noção de valor de exposição leva em consideração a relação da obra com um público consumidor. Esta relação vem gerar uma atitude próxima do conformismo.
Existindo a possibilidade de se consumir algo simplesmente pelo seu caráter de exposição em detrimento de qualquer outra avaliação e recusa a qualquer tipo de pensamento crítico em relação ao que está sendo exposto. No caso do Diabo o que entra em questão não é nem tanto o pensamento, mas o sentimento, este é coisificado, perdendo todo sentido sagrado, passando a ser um produto comercialmente distribuído. Aqui o Diabo não é mais sentido em seu valor de culto, como colocamos, é apreciado apenas em seu aspecto de exposição, o público não é levado a ter uma atitude de “recolhimento” próprio das coisas que é sagrada, mas para um lado totalmente contrário a este, o da diversão. Todo isto faz supor que da parte daquele (um cantor, por exemplo) que se utiliza de algo sagrado (o Diabo) como parte de um espetáculo, existe uma atitude passiva, ele não é invadido e nem se sente envolvido pelo clima de sacralidade que uma figura como o Diabo poderia lhe passar, ele nada mais faz do que consumir e reproduzir de forma profana uma temática religiosa. O que deveria ser uma saída do tempo profano para um novo tempo, nada faz a não ser permanecer num tempo também profano, o(s) indivíduo(s) não se perde(m) perante uma faculdade mística. Já da parte do público, o espetáculo gera uma atitude de conformismo frente ao que estar sendo transmitido.
O crescimento da indústria fonográfica nos últimos anos é indiscutível, assim como de outros aspectos da industria cultural, levando a alteração das relações que o produtor tem com produto do seu trabalho e deste com o público consumido. Por sua vez a história das religiões nos ensina que as manifestações religiosas não desaparecem facilmente, elas sofrem infindáveis processos de reinterpretação que muitas vezes encontram-se camufladas por trás de uma aparência profana. Não se deve esquecer nem deixar de lado a questão que informa que novos tipos de sincretismos entre indústria cultural e religião estão surgindo e que o que presenciamos acontecer com o Diabo acontece com outros aspectos da cultura religiosa.
(Chega a ser cômico perceber como temas religiosos medievais ainda ecoam no mundo “pós-moderno”.)


Alexsandro