27/03/2010

"Odeio ser ateu"

Muitos preferem os aromas da ilusão ou os doces da imaginação. Mas há aqueles que buscam respostas honestas para aquilo que são e como chegaram a ser o que são. O texto abaixo é um comentário escrito em um forum sobre ateismo. O que chama atenção é a coragem de se colocar diante da vida de maneira digna, digo, sem a necessidade de bengalas.





"Qualquer amigo meu sabe disso:
Odeio ser ateu. ODEIO ODEIO ODEIO.
Eu queria ser qualquer coisa, menos ateu.
Tenho crises existenciais várias vezes por semana, eu não quero morrer, não quero que acabe, mas VAI acabar mais cedo ou mais tarde.
Isso me espanta, me da medo. Não adianta me indicar artigo nenhum, não adianta me falar que minhas ações vão permanecer no mundo.
Eu vou morrer
Meus filhos vão morrer
As pessoas que amo vão morrer
Meus netos vão morrer
E um dia, o sol vai morrer, e a vida na terra vai morrer
Um dia, o universo inteiro vai morrer com morte gelada/big crunch.
Tudo que vai restar será um monte de quark, lepton, ou talvez apenas energia... fotons percorrendo pelo universo escuro e nada mais.
Quando minha vida tinha sentido eu era mais feliz. Podem me falar que o sentido da vida é o sentido que damos a ela... não é a mesma coisa. Estou falando do sentido da existência de tudo, e não da minha vida.
Claro que quando eu era religioso também tinha dúvidas desse tipo... 'por que é que meu Deus permite isso?'
Quando eu era deísta meu 'ego' sobre isso era bom... Deus era só um 'bixo' que deu início a tudo, uma força de balanço. Viviamos, morriamos, e continuava-mos vivendo, seja lá de que modo...
E agora, des de que virei ateu... pqp, é foda >.<
Eu queria acreditar em vida após a morte, queria mesmo...
Quando eu acreditava em papai noel, o natal era mais feliz, mais alegre e mais bonito.
Quando me provaram que papai noel não existe, o continuei gostando do natal... mas perdeu o sentido, a essencia, aquela alegria e mágica.
Quando eu acreditava em vida eterna, a vida era mais feliz, mais acolhedora, mais confortante...
Quando me provaram que ela era apenas um fruto da imaginação resultante do medo da morte dos seres humanos, continuei gostando da vida... mas ela perdeu o sentido, a essencia, aquele conforto de que tudo fazia sentido, aquela mágica...
Triste. "

Sodom
(http://ateus.net/forum/topic/3347-a-vida-com-sentido-seria-melhor/)



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24/03/2010

O triste militarismo do horário escolar


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O triste é comprovarmos que nossas escolas ainda seguem o esquema militar. Nossas crianças são tratadas como recrutas. Não é de hoje que advogo a tese de que as escolas no Brasil tratam mal as crianças, a começar pelo seus horários. É de extrema crueldade acorda-las cedo para irem para escola, muitas ainda chegam dormindo, outras dormem durante as aulas, ou pelo menos tentam.
É certo compreender que nossas escolas estão adaptadas aos horários de trabalhos dos pais. O que as tornam depósitos de crianças. Situação dferente de uma escola, como a do caso citado abaixo, que se preocupa com o desenvolvimento físico e mental das crianças e adolescentes.



Escola britânica muda horário das aulas e reduz faltas em 8%

Uma escola britânica que decidiu iniciar as aulas uma hora mais tarde como parte de um experimento cientifico afirma ter registrado uma queda significativa nos índices de ausência dos alunos.
A escola de ensino secundário Monkseaton High School, em Newcastle, no norte da Inglaterra, tem 800 alunos com idade entre 13 e 19 anos.
Desde outubro do ano passado, as aulas começam às 10h em vez das 9h.
A escola permanece aberta entre 8h e 17h e as aulas são dadas entre 10h e 15h40.
As observações iniciais indicam que as faltas gerais caíram 8% desde a adoção da medida. No mesmo período, as ausências persistentes tiveram uma queda de 27%.
Segundo o diretor Paul Kelley, a mudança no horário das aulas pode ajudar a criar adolescentes “mais felizes e mais bem educados”.
“Podemos ajudá-los a aprender melhor. Podemos ajudá-los a ficarem menos estressados simplesmente mudando o horário das aulas”, disse.

Relógio biológico

O diretor afirmou ainda que exames médicos já comprovaram que o adiamento no horário de início das aulas se enquadra melhor à saúde física e mental de jovens nessa faixa etária. Segundo ele, os adolescentes aprendem melhor no período da tarde.
O experimento de adiar o horário do início das aulas foi supervisionado por cientistas, que monitoraram o efeito da mudança sobre os alunos.
Um desses cientistas, o professor de neurociência da Universidade de Oxford, Russell Foster, realizou testes de memória nos alunos da escola. Segundo ele, os resultados sugerem que as lições mais difíceis devem ser ensinadas no período da tarde.
Foster afirmou ainda que o relógio biológico dos humanos pode ser alterado na adolescência – o que poderia significar que esses jovens querem acordar mais tarde não porque são preguiçosos, mas porque estariam programados para fazê-lo.
De acordo com o especialista em sono Till Roennenberg, é um “absurdo” começar as aulas cedo.
“Isso está relacionado ao modo como nosso relógio biológico se ajusta aos ciclos de claridade e escuridão. Isso claramente se torna mais tarde na adolescência”, disse.
Segundo ele, ao acordar muito cedo, os adolescentes perdem a parte mais essencial do sono.
“O sono é essencial para consolidar o que se aprendeu”, disse.
A escola afirmou que vai decidir antes do próximo ano letivo se vai dar continuidade ao programa. Os resultados finais sobre o experimento na instituição de ensino serão publicados em uma revista científica no próximo ano.

Margaret Ryan
(http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2010/03/100322_adolescente_sono_aula_np.shtml)


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21/03/2010

As palavras não dizem tudo (II) - Quem foi que disse que é só o amor que conhece o que é verdade?

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O Hino à Caridade, presente na Primeira Epístola aos Coríntios (13, 1-8), é uma das passagens do Novo Testamento mais conhecida. Só para citar o exemplo mais conhecido sobre a repercusão desse trecho do Evangelho, temos o poema de Camões (o Soneto 11) que mais recentemente foi adaptado pelos extinto Legião Urbana na música "Monte Castelo'. Lido fora do seu contexto é, sem dúvida, um poema belissimo e uma aula de amor fraternal, celebrado pelo valor da caridade. Entretanto, quando nos reportamos ao contexto no qual ele se insere, percebemos que o discurso da caridade e do amor que ele contém não passam de palavras rancorosas e cheias de veneno, usadas por um homem desejoso de poder e incoformado com suas posição diantes dos outros cristãos com mais notoriedade. Assim vejamos.

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O cristianismo provavelmente teria uma história bem diferente da que nós conhecemos se não tivesse cruzado seu destino um personagem complexo e misterioso. Saulo de Tarso, chamado de Paulo na Cilícia, era ao mesmo tempo judeu e seguidor da corrente dos fariseus, discípulo do grande mestre Gamaliel e cidadão romano desde o nascimento. De início, era um perseguidor convicto dos cristãos, aprovando o apedrejamento do primeiro mártir, Estêvão. Então, foi "iluminado na estrada para Damasco" e se converteu, trilhando uma rápida carreira dentro da incipiente Igreja cristã, até obter o título de "apóstolo". Segundo alguns estudiosos, Paulo foi o inventor do cristianismo, aquele que deturpou os ensinamentos do profeta judeu Jesus e os transformou em uma religião universal. Com certeza, Paulo contribuiu mais do que qualquer outro para a difusão da nova religião, até mesmo entre os não-judeus e no interior das primeiras comunidades cristãs, opondo-se vigorosamente aos judeus-cristãos, ou seja, àqueles que consideravam a observância da lei mosaica requisito fundamental para que alguém se tornasse cristão. No que diz respeito a outros aspectos da doutrina de Paulo, é possível examinar o hino à caridade, talvez sua passagem mais conhecida, que diz:

"Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, se não tivesse caridade, eu seria como o bronze que soa ou um sino que toca. E ainda que eu tivesse o dom da profecia e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, que possuísse a plenitude da fé capaz de mover montanhas, se não tivesse caridade, eu nada seria. E ainda que distribuísse toda minha fortuna e entregasse meu corpo para ser queimado, se não tivesse a caridade, nada disso me adiantaria. A caridade é paciente, é benigna a caridade; a caridade não é invejosa, não se vangloria, não tem soberba, não falta com o respeito, não busca seus interesses, não se irrita, não guarda rancor, não se alegra com a injustiça, e sim se rejubila com a verdade. Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. A caridade jamais passará. Quanto às profecias, desaparecerão. Quanto às línguas, cessarão. Quantoàa ciência, também desaparecerá."

E até um hino desinteressado pode, na verdade, conter segundas intenções. Paulo o insere dentro de uma dissertação sobre os "dons do espírito" (ou "carismas"), aos quais dá uma espécie de classificação, deixando em último lugar um misterioso "dom das línguas". O que significaria? Para entendê-lo, devemos voltar um passo atrás. Segundo os Atos, vejamos o que acontece aos apóstolos no dia de Pentecostes, cinqüenta dias depois da Páscoa da ressurreição:

"De repente veio do céu um ruído, como se soprasse um vento impetuoso, e encheu toda a casa onde estavam sentados. Apareceram-lhes então umas espécies de línguas de fogo, que se repartiram e repousaram sobre cada um deles. Ficaram todos cheios do Espírito Santo e começaram a falar em outras línguas, conforme o Espírito Santo lhes concedia que falassem."

Não fica claro o que seria exatamente o dom das línguas: nos Atos, é descrito como a capacidade de entender e se expressar em todas as línguas do mundo, mas também como uma fala incompreensível, de "embriagados". Outras passagens do Novo Testamento levam a pensar em um estado de transe, que contemplava a emissão de sons e palavras de significado obscuro. Qualquer que seja a interpretação correta, na época, tal acontecimento era considerado algo extraordinário. Paulo, que não fazia parte do grupo dos primeiros apóstolos, não recebeu o dom. Como escreveu o estudioso Gilberto Pressacco: "Na verdade, Paulo, que buscava e queria um reconhecimento oficial e geral de sua natureza de 'apóstolo', não podia afirmar nem se vangloriar por estar entre aqueles que receberam o Espírito no Pentecostes, os quais se tornaram as pedras vivas que sustentaram o pilar da Igreja primitiva. Ele podia, no máximo, se gabar da experiência vivida na estrada de Damasco, uma revelação solitária, particular e, talvez, dúbia para aquela Igreja que ele por tanto tempo perseguira (as Pseudoclementinas chegam a insinuar que se tratava de uma revelação do diabo, e não de Cristo).
Definitivamente, a hostilidade de Paulo só pode confirmar uma dolorosa sensação de inferioridade em razão da não-participação no acontecimento fundamental da Igreja, no qual fora dado um dom que ele não possuía e que, no entanto, era freqüente entre os primeiros cristãos." Por isso, Paulo exaltava o amor como a maior de todas as virtudes.
(Mais)... ele parecia ter péssimo gênio: durante uma viagem missionária, brigou com o companheiro Barnabé de tal forma que os dois prosseguiram em direções diferentes; Barnabé, por mar até Chipre, e Paulo, por terra, pela Síria e a Cilícia. E nas cartas não faltam alfinetadas nos outros apóstolos. Ele chegou a acusar publicamente de hipocrisia Pedro, o chefe da Igreja.

(Trecho retirado e adaptado de: O livro negro do cristianismo - Dois mil anos de crimes em nome de Deus. Autores: Jacopo Fo, Sergio Tomat e Laura Malucelli)
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- O que temos então? Temos Paulo desvalorizando dons que ele próprio não possuia. O Hino à Caridade é na verdade um hino de intolerância e de falta de respeito para com os outros cristãos, que deveriam ser vistos como irmãos. Que bela lição de amor e caridade! De fato ele estava fazendo exatamente o oposto do que estava pregando!




Abaixo temos o Soneto 11 de Luís de Camões citado acima:


Amor é fogo que arde sem se ver
É ferida que dói e não se sente
É contentamento descontente
É dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer,
É solitário andar por entre a gente,
É um não contentar-se de contente,
É cuidar que se ganha em se perder.

É um estar-se preso por vontade,
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com que nos mata lealdade,

Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo amor?



A seguir a música “Monte Castelo". Sendo letra e música de Renato Russo. Presentes adaptações de I Coríntios (13, 1-8) e Soneto 11 de Luís de Camões.



Ainda que eu falasse a língua do homens.
E falasse a língua do anjos, sem amor eu nada seria.

É só o amor, é só o amor.
Que conhece o que é verdade.
O amor é bom, não quer o mal.
Não sente inveja ou se envaidece.

O amor é o fogo que arde sem se ver.
É ferida que dói e não se sente.
É um contentamento descontente.
É dor que desatina sem doer.

Ainda que eu falasse a língua dos homens.
E falasse a língua dos anjos, sem amor eu nada seria.

É um não querer mais que bem querer.
É solitário andar por entre a gente.
É um não contentar-se de contente.
É cuidar que se ganha em se perder.

É um estar-se preso por vontade.
É servir a quem vence, o vencedor;
É um ter com quem nos mata lealdade.
Tão contrario a si é o mesmo amor.

Estou acordado e todos dormem todos dormem todos dormem.
Agora vejo em parte. Mas então veremos face a face.

É só o amor, é só o amor.
Que conhece o que é verdade.

Ainda que eu falasse a língua dos homens.
E falasse a língua do anjos, sem amor eu nada seria."


Alexsandro A. Oliveira


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19/03/2010

Não sabemos o que fazer com o mal e com a violência


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O que fazer com a violência? De onde vem tanto mal? São duas das questões mais importantes com a qual nos deparamos ultimamente. Sua importância cresce quando nos damos conta que não temos uma resposta satisfatória para nenhuma das duas.
Nosso ritmo de vida é instável, intranqüilo, inseguro, desconfortável, estamos a ponto de desmoronar. Acontecimentos traumáticos passaram a ser a regra. Tranqüilidade é uma exceção. Como chegamos a este estado de coisas? Como deixamos florescer uma sociedade pontilhada por tantas relações perversas?
Vivemos uma época contra-utópica. Nossos sonhos e projetos individuais são uma demonstração clara do nosso fracasso enquanto coletividade. Não sabemos conceber a vida para além das paredes de nossas casas (para os que têm casa). Usamos como desculpas para apaziguar nossa angústia séries e mais séries de conquistas tecnológicas. Festejamos tais conquistas como uma vantagem do nosso ímpeto insaciável e sempre a procura de mais. Não percebemos que o que acontece de fato é uma impossibilidade de nos encontrarmos satisfeitos, que perdemos completamente qualquer noção de limite, seja ele ético, moral, econômico, político ou estético.
Repito, somos a contra-utopia de uma sociedade vivida coletivamente. A prova é o florescimento da sociedade de consumo, do consumidor e seus desejos irrealizáveis. Nós nos encontramos em um tipo de sociedade que nos promete de tudo, mas, que ao mesmo tempo, tudo nos nega, sobretudo se não formos consumidores vorazes.
Nosso estilo de vida foi em parte construído tendo como um dos seus pilares a esperança no futuro. Assistimos, talvez, ao fim desse sonho quando percebemos que nossa capacidade de imaginar um mundo, não apenas melhor, mas diferente, se tornou uma tarefa imensamente difícil.
A explosão cotidiana de violência, seja nas grandes ou nas pequenas demonstrações, é indicador da nossa atual impossibilidade de construir, nem tanto um futuro, mas um presente que nos seja satisfatório. Não se tem ao certo uma definição e uma clareza do que de fato toda essa explosão de violência significa. Um clima de imprecisão quanto ao seu sentido faz do nosso tempo uma época caracterizada pela ausência de definição do que seria o mal. O vemos, o sentimos, o vivemos, mas não somos capazes de combatê-lo. E essa incapacidade revela nossa fragilidade.
Nossa violência não possui uma contrapartida, não sabemos lutar contra ela, não sabemos como amenizá-la. Ela não se apresenta como um estágio no qual precisamos passar para chegarmos a algo melhor. É uma violência que só leva a mais violência. Não há uma distinção clara e plausível entre os violentos e os não violentos. Testemunhamos um estado de indefinição, de ambigüidades, presentes no cotidiano, de oposições gratuitas, de violências sem direção, que se expressam das mais diversas formas, acabando por criar situações às vezes insuportáveis para alguns ou para muitos.
Alguns constroem abrigos para se proteger do mundo exterior (os condomínios fechados estão virando uma estranha necessidade sob o argumento da segurança) e, do outro lado, aqueles que se encontram a mercê da insegurança e da impossibilidade de ter alternativa, para estes não resta outra saída que a de encarar a realidade que se apresenta. Se em outros momentos os muros foram usados para proteção de todos contra aqueles que vinham de longe, contra os estranhos de outras terras, contra aqueles que falavam línguas estranhas, agora ele protege do estranho que fala a mesmo língua, vive na mesma cidade, talvez coma até o mesmo tipo de comida, vista o mesmo tipo de roupa, freqüente a mesma igreja ou coisa parecida. Somos, vivemos e formamos um mundo de estranhos entre nós. E esse não reconhecimento do outro gera e estabelece relações cínicas, distantes, superficiais, em que uma das prerrogativas principais é não se deixar envolver por esse outro que não se reconhece.
Para conter a onda de perversidade e maldade alguns clamam por mais leis, mais regras sociais, mais força repressiva, mais rigidez no trato com os “desajustados”, os “perigosos”, os “ameaçadores”, os “malvados”. Mas, no limite extremo, precisamos explicar de onde vem tanto mal, ele não pode ser gratuito. Mas aí nossos discursos fracassam. Não temos uma explicação plausível que convença e que indique um caminho que nos proteja de tanto mal. Fracassamos em explicar o mal, fracassamos em lidar com o mal. Fracassamos.
E nesse limite um cenário trágico se esboça: um cenário no qual violência e medo se misturam, se tornam os ingredientes que temperam a existência dos indivíduos. Neste cenário muitos acabam buscando no recolhimento de suas experiências respostas para as questões do mundo e do mal, mergulham, então, no universo do “auto” - auto-inspeção, autoproblematização, auto-realização, auto-monitoramento, auto-avaliação, auto-recuperação, auto-ajuda, etc. O irônico é que ao proceder assim o indivíduo acredita que está realmente determinando sua vida, que está livremente escolhendo, que essa será a melhor opção possível para ele.
Consumo e recolhimento tornam-se as balizas para esse indivíduo. Os seus sonhos passam pela possibilidade de consumir algo. Seu recolhimento significa de fato abster-se do mundo, torna-se, neste sentido, imperceptível, invisível, intocável. Neste clima só cabe a ele esperar que alguma solução para o problema da maldade caia do céu ou de onde quer que seja – o perigo aqui é que este sujeito quase sempre se encontra pronto para aceitar qualquer tipo de solução, até mesmo as mais fascistas e totalitárias.
A questão quanto ao que fazer com a violência e, quem sabe, a resposta sobre como superá-la, só pode advir, só pode ser entendida, só pode ser discutida com a ampliação de nossa compreensão do que ocorre em nossa sociedade e de como ela funciona, e tal tarefa é urgente. Mas não podemos medir o que se passa a partir de uma perspectiva tosca e medíocre. Para aqueles que só vêem “o lado bom” faz-se necessário um alerta: tal otimismo pode ser fruto exatamente de um afastamento do mundo, de um recolhimento frente às questões do mundo. Já para aqueles que não vêem saída, para aqueles que acreditam que estamos próximos do fim, lembro que é preciso estabelecer novas metas, ou mesmo acabar com todas as metas, principalmente aquelas oriundas de uma sociedade que inviabiliza qualquer ação de conjunto, que sufoca qualquer sentido ou perspectiva que não aquelas do mercado e do consumo.

Alexsandro A. Oliveira


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01/03/2010

Respeito muito minhas lágrimas/ Mas ainda mais minha risada



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A música é “Vaca Profana”, de Caetano Veloso, feita exclusivamente para a Gal Costa. A canção é uma verdadeira ode à Espanha, em especial à Catalunha, com retratos discursivos diretos, formando imagens através da poesia, mescladas nas cores vivas de então. É um roque intenso, com uma poesia visceral, difícil nos refrões que não são iguais na letra e que se repetem a todo instante. A canção registra com primor os movimentos de então, a ascensão da moda new wave (nova onda), as revistas musicais da capital espanhola, “Madrid te Mata”, aqui adaptada para o jogo de palavras “Também te mata Barcelona”. Várias expressões em catalão são usadas, como “Si us plau” – por favor, ou “Orchata de chufa”, uma bebida feita com nozes e bastante apreciada na Catalunha. A canção passa pelas ramblas de Barcelona, desfila pelos movimentos punks de Londres, como num retrato contemporâneo de Picasso, atravessa a bolha de Tel Aviv, desaguando nos caretas de Nova York. Caetano Veloso provoca o tempo todo, a começar pelo título da canção, “Vaca Profana”, que se antagoniza com a “vaca sagrada” de tantos seguidores, caretas ou não. Joga com expressões como caretas e “puretas”, termo que na Espanha da juventude new wave, era usado para definir os que não fumavam haxixe. “Vaca Profana” foi a única canção grandiosa dos anos oitenta feita por Caetano Veloso para Gal Costa interpretar... Canção de letra imensa e de palavras difíceis, quase que exóticas aos ouvidos, teve uma interpretação sublime de Gal Costa, com a explosão dos agudos nos florões dos refrões. Momentos únicos na voz desta mulher sagrada, a diluir com requinte a poesia de Caetano Veloso, a jorrar o leite sobre a sensibilidade de todos os ouvintes.
(Adaptado de: http://jeocaz.multiply.com/journal?&page_start=80)

A versão abaixo é da época em que a música estourou, Gal Costa em um momento especial de sua carreira.



Respeito muito minhas lágrimas
Mas ainda mais minha risada
Inscrevo, assim, minhas palavras
Na voz de uma mulher sagrada
Vaca profana, põe teus cornos
Pra fora e acima da manada
Vaca profana, põe teus cornos
Pra fora e acima da man...
Ê, ê, ê, ê, ê,
Dona das divinas tetas
Derrama o leite bom na minha cara
E o leite mau na cara dos caretas

Segue a "movida Madrileña"
Também te mata Barcelona
Napoli, Pino, Pi, Paus, Punks
Picassos movem-se por Londres
Bahia, onipresentemente
Rio e belíssimo horizonte
Bahia, onipresentemente
Rio e belíssimo horiz...
Ê, ê, ê, ê, ê,
Vaca de divinas tetas
La leche buena toda en mi garganta
La mala leche para los "puretas"

Quero que pinte um amor Bethânia
Stevie Wonder, andaluz
Como o que tive em Tel Aviv
Perto do mar, longe da cruz
Mas em composição cubista
Meu mundo Thelonius Monk`s blues
Mas em composição cubista
Meu mundo Thelonius Monk`s...
Ê, ê, ê, ê, ê,
Vaca das divinas tetas
Teu bom só para o oco, minha falta
E o resto inunde as almas dos caretas

Sou tímido e espalhafatoso
Torre traçada por Gaudi
São Paulo é como o mundo todo
No mundo, um grande amor perdi
Caretas de Paris e New York
Sem mágoas, estamos aí
Caretas de Paris e New York
Sem mágoas estamos a...
Ê, ê, ê, ê, ê,
Dona das divinas tetas
Quero teu leite todo em minha alma
Nada de leite mau para os caretas

Mas eu também sei ser careta
De perto, ninguém é normal
Às vezes, segue em linha reta
A vida, que é "meu bem, meu mal"
No mais, as "ramblas" do planeta
"Orchta de chufa, si us plau"
No mais, as "ramblas" do planeta
"Orchta de chufa, si us...
Ê, ê, ê, ê, ê,
Deusa de assombrosas tetas
Gotas de leite bom na minha cara
Chuva do mesmo bom sobre os caretas...


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