21/03/2010

As palavras não dizem tudo (II) - Quem foi que disse que é só o amor que conhece o que é verdade?

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O Hino à Caridade, presente na Primeira Epístola aos Coríntios (13, 1-8), é uma das passagens do Novo Testamento mais conhecida. Só para citar o exemplo mais conhecido sobre a repercusão desse trecho do Evangelho, temos o poema de Camões (o Soneto 11) que mais recentemente foi adaptado pelos extinto Legião Urbana na música "Monte Castelo'. Lido fora do seu contexto é, sem dúvida, um poema belissimo e uma aula de amor fraternal, celebrado pelo valor da caridade. Entretanto, quando nos reportamos ao contexto no qual ele se insere, percebemos que o discurso da caridade e do amor que ele contém não passam de palavras rancorosas e cheias de veneno, usadas por um homem desejoso de poder e incoformado com suas posição diantes dos outros cristãos com mais notoriedade. Assim vejamos.

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O cristianismo provavelmente teria uma história bem diferente da que nós conhecemos se não tivesse cruzado seu destino um personagem complexo e misterioso. Saulo de Tarso, chamado de Paulo na Cilícia, era ao mesmo tempo judeu e seguidor da corrente dos fariseus, discípulo do grande mestre Gamaliel e cidadão romano desde o nascimento. De início, era um perseguidor convicto dos cristãos, aprovando o apedrejamento do primeiro mártir, Estêvão. Então, foi "iluminado na estrada para Damasco" e se converteu, trilhando uma rápida carreira dentro da incipiente Igreja cristã, até obter o título de "apóstolo". Segundo alguns estudiosos, Paulo foi o inventor do cristianismo, aquele que deturpou os ensinamentos do profeta judeu Jesus e os transformou em uma religião universal. Com certeza, Paulo contribuiu mais do que qualquer outro para a difusão da nova religião, até mesmo entre os não-judeus e no interior das primeiras comunidades cristãs, opondo-se vigorosamente aos judeus-cristãos, ou seja, àqueles que consideravam a observância da lei mosaica requisito fundamental para que alguém se tornasse cristão. No que diz respeito a outros aspectos da doutrina de Paulo, é possível examinar o hino à caridade, talvez sua passagem mais conhecida, que diz:

"Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, se não tivesse caridade, eu seria como o bronze que soa ou um sino que toca. E ainda que eu tivesse o dom da profecia e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, que possuísse a plenitude da fé capaz de mover montanhas, se não tivesse caridade, eu nada seria. E ainda que distribuísse toda minha fortuna e entregasse meu corpo para ser queimado, se não tivesse a caridade, nada disso me adiantaria. A caridade é paciente, é benigna a caridade; a caridade não é invejosa, não se vangloria, não tem soberba, não falta com o respeito, não busca seus interesses, não se irrita, não guarda rancor, não se alegra com a injustiça, e sim se rejubila com a verdade. Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. A caridade jamais passará. Quanto às profecias, desaparecerão. Quanto às línguas, cessarão. Quantoàa ciência, também desaparecerá."

E até um hino desinteressado pode, na verdade, conter segundas intenções. Paulo o insere dentro de uma dissertação sobre os "dons do espírito" (ou "carismas"), aos quais dá uma espécie de classificação, deixando em último lugar um misterioso "dom das línguas". O que significaria? Para entendê-lo, devemos voltar um passo atrás. Segundo os Atos, vejamos o que acontece aos apóstolos no dia de Pentecostes, cinqüenta dias depois da Páscoa da ressurreição:

"De repente veio do céu um ruído, como se soprasse um vento impetuoso, e encheu toda a casa onde estavam sentados. Apareceram-lhes então umas espécies de línguas de fogo, que se repartiram e repousaram sobre cada um deles. Ficaram todos cheios do Espírito Santo e começaram a falar em outras línguas, conforme o Espírito Santo lhes concedia que falassem."

Não fica claro o que seria exatamente o dom das línguas: nos Atos, é descrito como a capacidade de entender e se expressar em todas as línguas do mundo, mas também como uma fala incompreensível, de "embriagados". Outras passagens do Novo Testamento levam a pensar em um estado de transe, que contemplava a emissão de sons e palavras de significado obscuro. Qualquer que seja a interpretação correta, na época, tal acontecimento era considerado algo extraordinário. Paulo, que não fazia parte do grupo dos primeiros apóstolos, não recebeu o dom. Como escreveu o estudioso Gilberto Pressacco: "Na verdade, Paulo, que buscava e queria um reconhecimento oficial e geral de sua natureza de 'apóstolo', não podia afirmar nem se vangloriar por estar entre aqueles que receberam o Espírito no Pentecostes, os quais se tornaram as pedras vivas que sustentaram o pilar da Igreja primitiva. Ele podia, no máximo, se gabar da experiência vivida na estrada de Damasco, uma revelação solitária, particular e, talvez, dúbia para aquela Igreja que ele por tanto tempo perseguira (as Pseudoclementinas chegam a insinuar que se tratava de uma revelação do diabo, e não de Cristo).
Definitivamente, a hostilidade de Paulo só pode confirmar uma dolorosa sensação de inferioridade em razão da não-participação no acontecimento fundamental da Igreja, no qual fora dado um dom que ele não possuía e que, no entanto, era freqüente entre os primeiros cristãos." Por isso, Paulo exaltava o amor como a maior de todas as virtudes.
(Mais)... ele parecia ter péssimo gênio: durante uma viagem missionária, brigou com o companheiro Barnabé de tal forma que os dois prosseguiram em direções diferentes; Barnabé, por mar até Chipre, e Paulo, por terra, pela Síria e a Cilícia. E nas cartas não faltam alfinetadas nos outros apóstolos. Ele chegou a acusar publicamente de hipocrisia Pedro, o chefe da Igreja.

(Trecho retirado e adaptado de: O livro negro do cristianismo - Dois mil anos de crimes em nome de Deus. Autores: Jacopo Fo, Sergio Tomat e Laura Malucelli)
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- O que temos então? Temos Paulo desvalorizando dons que ele próprio não possuia. O Hino à Caridade é na verdade um hino de intolerância e de falta de respeito para com os outros cristãos, que deveriam ser vistos como irmãos. Que bela lição de amor e caridade! De fato ele estava fazendo exatamente o oposto do que estava pregando!




Abaixo temos o Soneto 11 de Luís de Camões citado acima:


Amor é fogo que arde sem se ver
É ferida que dói e não se sente
É contentamento descontente
É dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer,
É solitário andar por entre a gente,
É um não contentar-se de contente,
É cuidar que se ganha em se perder.

É um estar-se preso por vontade,
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com que nos mata lealdade,

Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo amor?



A seguir a música “Monte Castelo". Sendo letra e música de Renato Russo. Presentes adaptações de I Coríntios (13, 1-8) e Soneto 11 de Luís de Camões.



Ainda que eu falasse a língua do homens.
E falasse a língua do anjos, sem amor eu nada seria.

É só o amor, é só o amor.
Que conhece o que é verdade.
O amor é bom, não quer o mal.
Não sente inveja ou se envaidece.

O amor é o fogo que arde sem se ver.
É ferida que dói e não se sente.
É um contentamento descontente.
É dor que desatina sem doer.

Ainda que eu falasse a língua dos homens.
E falasse a língua dos anjos, sem amor eu nada seria.

É um não querer mais que bem querer.
É solitário andar por entre a gente.
É um não contentar-se de contente.
É cuidar que se ganha em se perder.

É um estar-se preso por vontade.
É servir a quem vence, o vencedor;
É um ter com quem nos mata lealdade.
Tão contrario a si é o mesmo amor.

Estou acordado e todos dormem todos dormem todos dormem.
Agora vejo em parte. Mas então veremos face a face.

É só o amor, é só o amor.
Que conhece o que é verdade.

Ainda que eu falasse a língua dos homens.
E falasse a língua do anjos, sem amor eu nada seria."


Alexsandro A. Oliveira


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