24/08/2014

A banalidade do mal e o Serviço Público de Eliminação de Inúteis


Hannah Arendt, filósofa, falou sobre a banalidade do mal. Uma ideia simples, mas ao mesmo tempo assustadora. O que significa a tal banalidade do mal? Significa que o mal não é necessariamente praticado como uma ação decididamente maligna. Aquele que o faz não é nada mais nada menos que um ser humano comum. Não se é mal apenas a partir de um histórico de violências ou por se possuir um caráter distorcido ou moral e psicologicamente doentio. É-se mal também quando se acredita agir por dever dentro de uma lógica de cumprimento de ordens superiores. Pode-se ser mal de maneira mais simples ainda, apenas agindo motivado por um tolo desejo de ascender em qualquer carreira profissional. Pode-se ser mal de forma ainda mais boba e idiota quando se age dentro de uma lógica burocrática, cumprindo ordens sem questioná-las e desejando ser elogiado por ter feito tudo conforme mandado. 
O mal está presente nas nossas ideias e podemos não nos dá conta disso. Mas devemos entender que o mal não é um demônio que toma posse do nosso corpo, não é uma categoria filosófica que existe pairando no mundo das ideias. O mal só existe no “ato mau” que praticamos, na “ação má” que deliberadamente fazemos acontecer, no “pensamento mau”, nas “ideias más” que fazemos circular sem nos dá conta das implicações do seu conteúdo. O mal é produto nosso, de homens e mulheres, e se manifesta em razão de nossas escolhas.
Quando escuto, vejo ou leio algo como um comentário no qual um homem ou uma mulher fala com desprezo de outro ser humano, afirmando que o mundo seria melhor se ele ou ela passassem fome, que outro ser humano é vagabundo ou preguiçoso apenas porque é miserável me questiono sobre o que somos. Somos alguma espécie de abelha? Só valemos para a colmeia se formos produtivos? Se não der lucro para alguém ou contribuir para o engrandecimento do estado não temos valor algum? É isso que vale? É assim que deve funcionar? Se não formos um cidadão modelo, um operário padrão, um homem ou mulher bem obediente devemos ser eliminados?
O que me assusta é que se fosse proposto a criação de um "Serviço Público de Eliminação de Inúteis" faltaria vagas para tantos candidatos ao posto de “selecionador de inúteis” (inúteis que iriam queimar nos fornos mantidos acessos por gente de bem). O que demonstra como há fascistas disfarçados de "gente boa" andando por ai.

P.S.: Abandonar a banalidade do mal é buscar agir de forma ética. É entender que se faz necessário um pensamento crítico que nos leve a ver outro ser humano como humano e não como coisa.


Alexsandro

11/08/2014

Somos alienígenas em nosso próprio planeta



A sociedade contemporânea, marcadamente mercadológica, se reproduz num processo alucinante, numa espécie de canibalismo de si: produção e consumo sem medida para absolutamente tudo. Sociedade na qual cada um e todos são alienígenas que não conseguem se encaixar. 
Fazemos muito esforço para que tudo se encaixe. Mas nada se encaixa, cada aspecto das nossas vidas tem pouca ou nenhuma ligação com outros aspectos. Se fossemos um personagem sem nome, sem história, sem propósito, não faria a menor diferença. Sem alma e sem essência sob as camadas da pele, percebemos que somos algo que não mais reconhecemos como nosso. Nossos diálogos são lacônicos: diálogos que não fazem refletir. Vivemos com a sensação de já ter visto tudo antes, de já ter ouvido tudo antes, de fazer sempre do mesmo modo. Sabe aquela sensação de vida desconectada?
Por nada fazer sentido, buscamos uma humanidade que não possuímos por meio da inveja dos outros - que me invejem, pois assim confirmo que sou algo com significado. Estimula-se a inveja como forma de se chegar a ser algo próximo do desejável em termos de produto a venda. Daí, da inveja à sedução: seduzimos e nos deixamos seduzir para tentar confirmar que fazemos parte de algo maior do que nós e que nosso lugar está garantido. 
Como alienígenas em nosso próprio mundo, abdicamos do poder de habitá-lo como força viva e potencia vigorosa da vida. Sucumbimos diante do poder de sedução do mercado que nos capturou e abduziu a vida humana e suas forças de criação.



Alexsandro

O marketing da salvação e a nossa incapacidade de produzir boas soluções




O tempo das hierarquias ou papeis estáveis e previsíveis, típicos das sociedades pré-modernas, passou. Proclama-se o movimento, o fluido, questionam-se as autoridades. Festeja-se a autonomia e a liberdade como valores absolutos, mesmo que não sejam vividos em sua plenitude. Vivemos o tempo no qual o individuo assumiu o ônus das suas opções, mesmo que não esteja preparado para pagar e assumir a autonomia de sua vida como um fardo sem suporte. Assim, a imagem de homens e mulheres passivos, típicos da visão cosmocêntrica na qual estes mesmos homens e mulheres se viam como partes da criação, amoldando-se as leis (divinas ou naturais) preexistentes, já não satisfaz. Queremos-nos ativos, nos imaginamos senhores de nossos destinos. A nova imagem antropocêntrica tem na autocriação seu mote de direcionamento.
Não chegamos ao tempo atual a partir de movimentos de acontecimentos ideologicamente articulados, mas como resultado de uma evolução histórico-cultural não linear e irreversível. Somos o resultado de processos que romperam com modelos existentes e cujo impacto social denotou saltos qualitativos na dimensão simbólica da existência a ponto de introjetar novos sentidos e significados na realidade vivida por nós. Tamanho foi esse processo que desencadeou uma convulsão nos valores até então estabelecidos. Se se passar em revista o momento atual, uma de suas marcas registradas é, decerto, a crise que implica uma ruptura total com traços culturais que, por exemplo, colocava a solidariedade como um dos fundamentos essenciais da vida social. A ideia de uma identidade construída tendo como referência relações que implicam ou que induziam para o bem de toda a sociedade já não é tão forte (se é que um dia foi). Em vez disso tem-se uma exagerada valorização do individualismo, onde tudo parece convergir para saciar e garantir a realização individual em detrimento do bem social. Estabeleceu-se a tirania da autorrealização. Em contrapartida, e no seu inverso, as questões básicas da sociedade foram relegadas ao nível quase do insignificante. 
É neste contexto que o mercado passa a ser o setor das realizações humanas. Suas leis implacáveis legislam, entretanto, para satisfazer apenas aqueles que possuem poder aquisitivo satisfatório. O distanciamento entre os grupos economicamente definidos só aumenta. A opulência dos mais abastados, o consumo sofisticado das elites e a realização individualista que vivem e promovem como verdade a ser seguida torna insignificantes as questões que dizem respeito aos precários níveis de sobrevivência da maioria. 
(Sem dúvida que questionamentos foram feitos e por meio deles tomou-se consciência de que toda esta precariedade, não apenas econômica, mas, sobretudo ética, na qual a sociedade se encontra submergida.)
E o que dizer sobre o sagrado no cotidiano das sociedades? Um olhar, mesmo que descomprometido ou sem interesse, permite perceber que a amplitude do fenômeno religioso é significativa. Florescem religiões, multiplicam-se feiras místicas, a leitura esotérica ganhou espaço entre os best-sellers, aspectos religiosos são usados em campanhas eleitorais, a televisão põe dentro de casa o padre ou o pastor, atletas fazem suas orações antes das competições em meio ao público, demonstrando assim que as práticas religiosas encontram-se espalhadas por toda sociedade. Mais estes são apenas os aspectos mais palpáveis do fenômeno. Devemos ter claro que a extrema valorização do indivíduo levou-nos a uma série de fenômenos que se caracterizam por ampliarem o desvinculo entre os indivíduos e entre esses e a sociedade - é a corrupção, a guerra, a poluição, os assaltos, o desemprego, as epidemias, a desigualdade social, a competição, a autorrealização (em vez da realização conjunta), etc. A solução para a questão do desvinculo demandaria a mudança em nosso modo de conceber e vida e nosso modo de relacionar-se com os outros e com o mundo. Enfim, soluções que se encontram em um espaço ainda não ocupado pela maioria das pessoas ou cujos significados concorrem com significados produzidos por aqueles que desejam manter tudo como ai se encontra. Para estes mais vale promover supostas soluções e significados que passem pelos produtos e serviços a venda e que foram produzidos em suas fábricas de promessas imediatistas. É assim, o significado e a superação do que ai se encontra são buscados recorrendo às promessas imediatistas de uma vida melhor feitas sob medida para o consumidor. É aqui que religião e mercado se encontram. Uma das mais velhas práticas utilizadas ao longo das épocas para oferecer respostas e soluções para os problemas humanos, a religião, se soma ao mercado, o ambiente que a pouco se estabeleceu como o promotor de todo tipo de solução para qualquer questão humana. Da soma dos dois sai o marketing da salvação.
É isso, para homens e mulheres desejosos de soluções para suas vidas, existe o marketing da salvação, que promete salvação individual em um mundo marcado por manifestações de miséria cujo fim não se percebe a partir de soluções advindas de qualquer daqueles que ocupam postos criados para, de fato, produzirem soluções eficazes e sem engodo e que deveriam ser os promotores reais das necessárias soluções ou não se entende que muitos dos nossos principais problemas, sejam individuais ou coletivos, só serão satisfatoriamente resolvidos com o comprometimento de todos.
Neste contexto o marketing da salvação promove uma estratégia na qual a salvação (solução de qualquer problema humano) passa a ser entendida como a posse e o consumo do sagrado. Em tais práticas não se reflete sobre a significação, a dimensão existencial do gesto ou do objeto sagrado. O que existe é apenas mercadorias descartáveis e tentativas isoladas de, no dia-a-dia, salvar o emprego, evitar a solidão, sarar as doenças e livrar-se daquelas situações que nos colocam em guerra uns com os outros. Desta forma, o próprio sentido da religião, o religare (religamento), fica deformado em meio a tanta luta ou em meio à busca compulsiva de um sentido produzido ao gosto do freguês.
O delicado e o mais revelador da questão é o fato de que apesar de tudo isso é possível ler a esperança lançada no mundo religioso. Seja através do consumo de objetos ou de práticas, o fenômeno revela o desejo presente em mulheres e homens de fazerem o religamento, embora nem tanto com Deus, mas com aqueles com quem dividem a vida. A religião e o mercado, e dentro dos dois as nossas angústias, é prova da nossa luta para refazer os vínculos humanos que foram despedaçados ao longo dos últimos tempos. A religião e o mercado são a prova da nossa incapacidade de produzir boas soluções para um dos nossos principais problemas: como tornar o nosso estar juntos melhor.



Alexsandro



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06/08/2014

Realizar é diferente de conformar



No mundo da autoajuda, da motivação e da teologia da prosperidade o apelo a ideia de "realizar” é uma constante. Vemos uma infinidade de sugestões e dicas de como fazê-lo:
 - O caminho para a realização de seus sonhos pode não ser nada fácil. Muitas vezes, significa sacrifícios difíceis e decisões cheias de riscos e inseguranças envolvidos. Para muitos é a coisa mais difícil da vida. Ainda assim, podemos ver diariamente exemplos de pessoas que não deixaram esses fatores serem maiores do que a vontade de conseguir o que desejam;
 - Aprender a transformar os sonhos em realidade pode parecer muito difícil, mas garante sua satisfação pessoal;
 - [5, 6, 7, um milhão de] Passos para realizar seus sonhos profissionais;
 - [5, 6, 7, um milhão de] Dicas para realizar seus sonhos e superar limites;
 - A crença de ser capaz de seguir adiante e realizar seu desejo é fundamental para que isso aconteça;
 - Entre em contato com a essência do que está buscando. Entre em contato com o sentimento que a realização do sonho trará à sua vida, e perceberá que seu sonho pode ter muitas formas de se transformar em realidade;
 - Cuide da sua autoestima. Você precisa sentir-se valioso e merecedor do sonho que quer realizar;
 -[5, 6, 7, um milhão de] Dicas para perder o medo e realizar seus sonhos;
 Existe até uma "Calculadora dos sonhos". Nela se pode calcular quanto custa um sonho. O idealizador afirmar que saber quanto custa é o primeiro passo para torná-lo real. A calculadora é ideal para aqueles sonhos que envolvem custos financeiros: comprar um carro, fazer uma viagem, comprar um imóvel, fazer uma cirurgia plástica, etc.

Não sei se agindo assim estamos realizando algo. Tenha a impressão que parece mais conformação que realização. Isso porque conformar é desejar aquilo que está sendo oferecido e colocar aquilo como prioridade. É por isso que muito daquilo que é apresentado como realização não passa de uma busca por conformação. A ação que parte de uma forma preestabelecida e conveniente. É colocar a ação em uma fôrma. Agir em direção ao estabelecido. Quando ouvimos frases do tipo: “estou realizando um sonho”; o sentido pode ser traduzido assim: “estou conformando minha vida ao que foi estabelecido como desejável. Desejei o desejável e agora fui recompensado”.
Por sua vez podemos pensar a realização, o realizar, como uma ação que tenta se esquivar do desejável, que tenta ir além do estabelecido.
A palavra realizar vem do latim reallis acrescida do sufixo izare (implementar, colocar em prática).
Podemos entender Realizar como a ação de criar algo para além do campo da realidade.
Vamos por parte e iniciemos fazendo uma distinção entre “real” e e “realidade”. O “real” pode ser entendido como tudo que existe; tudo, independentemente de termos contato ou não, de sabermos de sua existência ou não. Tudo que faz parte da nossa “realidade” faz parte do “real”, mas muito daquilo que faz parte do “real” não faz parte da nossa “realidade”. Nossa “realidade” é apenas um fragmento do “real”. Quando desejamos algo o fazemos dentro da nossa “realidade” conhecida, para além dela não conseguimos pensar. Podemos intuir que existe algo maior, mas dificilmente conseguimos conceber o que seja. Além desse fato advém também que nunca nos relacionamos com o mundo em si, mais sempre interpretamos o mundo. Nossa “realidade” é, por definição, o mundo segundo nossa interpretação. Uma interpretação que é sempre construída por conjuntos de valores e significados que constituem nossa cosmovisão.
Nós podemos inserir coisas no “real”? Sim, quando criamos. Um poema não era real até o poeta escrevê-lo. Um personagem de uma ficção não existia até ser descrito por um autor. No ato de criação podemos “realizar”, por algo na “realidade”, e, por consequência, no “real”.
Assim, realizar pode ser entendida como a ação de por algo diferente no mundo, de criar. Criação como uma experiência singular. Realizar é, neste sentido, uma experiência artística. Um mergulho no caos, emergindo com um sentido novo, uma expressão nova, um modo novo de fazer. É olhar em volta e sentir que aquilo que o status quo oferece não é suficiente, que há mais para além dele. É sentir o instinto de criação pulsando forte.

Só há realização quando há criação. Na conformação não há criação, no máximo reprodução. Só nos realizamos quando criamos.  


Alexsandro


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