11/08/2014

O marketing da salvação e a nossa incapacidade de produzir boas soluções




O tempo das hierarquias ou papeis estáveis e previsíveis, típicos das sociedades pré-modernas, passou. Proclama-se o movimento, o fluido, questionam-se as autoridades. Festeja-se a autonomia e a liberdade como valores absolutos, mesmo que não sejam vividos em sua plenitude. Vivemos o tempo no qual o individuo assumiu o ônus das suas opções, mesmo que não esteja preparado para pagar e assumir a autonomia de sua vida como um fardo sem suporte. Assim, a imagem de homens e mulheres passivos, típicos da visão cosmocêntrica na qual estes mesmos homens e mulheres se viam como partes da criação, amoldando-se as leis (divinas ou naturais) preexistentes, já não satisfaz. Queremos-nos ativos, nos imaginamos senhores de nossos destinos. A nova imagem antropocêntrica tem na autocriação seu mote de direcionamento.
Não chegamos ao tempo atual a partir de movimentos de acontecimentos ideologicamente articulados, mas como resultado de uma evolução histórico-cultural não linear e irreversível. Somos o resultado de processos que romperam com modelos existentes e cujo impacto social denotou saltos qualitativos na dimensão simbólica da existência a ponto de introjetar novos sentidos e significados na realidade vivida por nós. Tamanho foi esse processo que desencadeou uma convulsão nos valores até então estabelecidos. Se se passar em revista o momento atual, uma de suas marcas registradas é, decerto, a crise que implica uma ruptura total com traços culturais que, por exemplo, colocava a solidariedade como um dos fundamentos essenciais da vida social. A ideia de uma identidade construída tendo como referência relações que implicam ou que induziam para o bem de toda a sociedade já não é tão forte (se é que um dia foi). Em vez disso tem-se uma exagerada valorização do individualismo, onde tudo parece convergir para saciar e garantir a realização individual em detrimento do bem social. Estabeleceu-se a tirania da autorrealização. Em contrapartida, e no seu inverso, as questões básicas da sociedade foram relegadas ao nível quase do insignificante. 
É neste contexto que o mercado passa a ser o setor das realizações humanas. Suas leis implacáveis legislam, entretanto, para satisfazer apenas aqueles que possuem poder aquisitivo satisfatório. O distanciamento entre os grupos economicamente definidos só aumenta. A opulência dos mais abastados, o consumo sofisticado das elites e a realização individualista que vivem e promovem como verdade a ser seguida torna insignificantes as questões que dizem respeito aos precários níveis de sobrevivência da maioria. 
(Sem dúvida que questionamentos foram feitos e por meio deles tomou-se consciência de que toda esta precariedade, não apenas econômica, mas, sobretudo ética, na qual a sociedade se encontra submergida.)
E o que dizer sobre o sagrado no cotidiano das sociedades? Um olhar, mesmo que descomprometido ou sem interesse, permite perceber que a amplitude do fenômeno religioso é significativa. Florescem religiões, multiplicam-se feiras místicas, a leitura esotérica ganhou espaço entre os best-sellers, aspectos religiosos são usados em campanhas eleitorais, a televisão põe dentro de casa o padre ou o pastor, atletas fazem suas orações antes das competições em meio ao público, demonstrando assim que as práticas religiosas encontram-se espalhadas por toda sociedade. Mais estes são apenas os aspectos mais palpáveis do fenômeno. Devemos ter claro que a extrema valorização do indivíduo levou-nos a uma série de fenômenos que se caracterizam por ampliarem o desvinculo entre os indivíduos e entre esses e a sociedade - é a corrupção, a guerra, a poluição, os assaltos, o desemprego, as epidemias, a desigualdade social, a competição, a autorrealização (em vez da realização conjunta), etc. A solução para a questão do desvinculo demandaria a mudança em nosso modo de conceber e vida e nosso modo de relacionar-se com os outros e com o mundo. Enfim, soluções que se encontram em um espaço ainda não ocupado pela maioria das pessoas ou cujos significados concorrem com significados produzidos por aqueles que desejam manter tudo como ai se encontra. Para estes mais vale promover supostas soluções e significados que passem pelos produtos e serviços a venda e que foram produzidos em suas fábricas de promessas imediatistas. É assim, o significado e a superação do que ai se encontra são buscados recorrendo às promessas imediatistas de uma vida melhor feitas sob medida para o consumidor. É aqui que religião e mercado se encontram. Uma das mais velhas práticas utilizadas ao longo das épocas para oferecer respostas e soluções para os problemas humanos, a religião, se soma ao mercado, o ambiente que a pouco se estabeleceu como o promotor de todo tipo de solução para qualquer questão humana. Da soma dos dois sai o marketing da salvação.
É isso, para homens e mulheres desejosos de soluções para suas vidas, existe o marketing da salvação, que promete salvação individual em um mundo marcado por manifestações de miséria cujo fim não se percebe a partir de soluções advindas de qualquer daqueles que ocupam postos criados para, de fato, produzirem soluções eficazes e sem engodo e que deveriam ser os promotores reais das necessárias soluções ou não se entende que muitos dos nossos principais problemas, sejam individuais ou coletivos, só serão satisfatoriamente resolvidos com o comprometimento de todos.
Neste contexto o marketing da salvação promove uma estratégia na qual a salvação (solução de qualquer problema humano) passa a ser entendida como a posse e o consumo do sagrado. Em tais práticas não se reflete sobre a significação, a dimensão existencial do gesto ou do objeto sagrado. O que existe é apenas mercadorias descartáveis e tentativas isoladas de, no dia-a-dia, salvar o emprego, evitar a solidão, sarar as doenças e livrar-se daquelas situações que nos colocam em guerra uns com os outros. Desta forma, o próprio sentido da religião, o religare (religamento), fica deformado em meio a tanta luta ou em meio à busca compulsiva de um sentido produzido ao gosto do freguês.
O delicado e o mais revelador da questão é o fato de que apesar de tudo isso é possível ler a esperança lançada no mundo religioso. Seja através do consumo de objetos ou de práticas, o fenômeno revela o desejo presente em mulheres e homens de fazerem o religamento, embora nem tanto com Deus, mas com aqueles com quem dividem a vida. A religião e o mercado, e dentro dos dois as nossas angústias, é prova da nossa luta para refazer os vínculos humanos que foram despedaçados ao longo dos últimos tempos. A religião e o mercado são a prova da nossa incapacidade de produzir boas soluções para um dos nossos principais problemas: como tornar o nosso estar juntos melhor.



Alexsandro



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