18/12/2012

Autoengano como motivação e a fuga da morte



O fato é que precisamos ultravalorizar a nós mesmos e todos os nossos objetivos por uma simples questão de autopreservação. A motivação humana sustenta-se neste tipo de autoengano. Talvez isso não seja tão ruim, só é estranho. (André Díspore Cancian)

 O autoengano é a chave para suportar a vida e fazer dela algo que valha alguma coisa. Tudo que fazemos, o empenho que investimos, os sentidos que desejamos encontrar nas coisas com as quais nos envolvemos funcionam como uma armadura protetora diante do absurdo da vida. Mais do que apenas uma forma de preenchermos o tempo de uma vida, são o energético motivacional da vida. Caminhamos buscando uma direção que nos pareça a menos angustiante e dolorosa possível. Valorizamos as coisas mais idiotas ou esperamos delas grandes consequências. Elevamos as expectativas a níveis que nenhum outro animal poderia sequer imaginar caso pudessem fazer. Valorizamos tanto a nós mesmos que chegamos a esquecer do básico sobre quem somos: seres mortais.

Aconteceu-nos uma coisa realmente curiosa: nós, literalmente, esquecemos de que temos de morrer. É esta a conclusão a que chegaram os historiadores depois de terem examinado todas as fontes escritas da nossa época. Uma investigação realizada nos cerca de cem mil livros de ensaio publicados nos últimos vinte anos mostra que apenas duzentos deles (0,2%, portanto) tocavam o problema da morte. Livros de medicina incluídos. (Pierre Chaunu)

Alexsandro

12/12/2012

Da amizade como acontecimento



Há hoje no nosso mundo muitas formas de pessoas "sem": os sem terra, os sem tetos, os sem namorado, os sem mídia, os sem emprego, os sem universidade, etc. Para cada uma dessas formas de "sem" visualizamos um universo de consequências, prejuízos, desconfortos, feridas no corpo, na mente e no mundo.
Além dessas formas de "sem" há muitas outras, aqui vou considerar apenas uma. A forma de “sem” que, assim como as anteriores, é nefasta para o coração humano e para Gaia. Tal forma de “sem” diz respeito aos "sem talentos".
Schopenhauer, em certo momento, faz um prognostico terrível sobre os efeitos que as relações maternas e paternas podem produzir em alguém. Não precisamos concordar que isso seja unânime, mas tem lá sua plausibilidade. Assim ele diz:
"Alguém que tenha tido uma desmiolada como mãe e um indolente como pai jamais escreverá uma Ilíada; nem mesmo se estudar em seis universidades."
Se considerarmos um pouco o que Schopenhauer disse podemos compreender o quanto é realmente complicado para qualquer um de nós começarmos a desenvolver qualquer talento em um meio que não favorece, principalmente quando o principal obstáculo é pai ou mãe (ou os dois juntos, o que é ainda pior).
Todos nós, homens e mulheres, fazemos parte de uma espécie que se desenvolveu graças a sua capacidade criativa, aos talentos que possibilitaram sobrevivência em um mundo exigente. Foi por meio da evolução de um imenso número de talentos que chegamos aonde chegamos como espécie. Não há como hierarquizar um em detrimento de outro, todos foram e são fundamentais de alguma forma em dadas circunstâncias. Todavia, entre todos, um que foi e é imprescindível é o talento de inventar formas de ser e de viver.
Através de inúmeras tentativas, ora acertando, ora errando, algumas boas outras más, inventamos ao longo do tempo e do espaço formas de ser e de viver e assim continuamos. Mas tal talento necessita de tempo e de espaço para se desenvolver e prosperar. E mais do que qualquer outra coisa, essa nossa capacidade criativa precisa ser estimulada, cativada, cuidada, enfim, precisa de apoio. Mas não qualquer apoio, precisa de um apoio que abra caminho, que deixe ser, que possibilite que a vida aconteça, que a diferença se faça presente, que a potência de vida exploda de forma fulgurante.

Para que nosso talento de criar formas de ser e de viver possa prosperar precisamos de apoio. Só amparados em alguém podemos escapar da forma “sem talento" e nos tornamos alguém "com talento" (talento que trato aqui como a possibilidade de criarmos formas de vida). Desta forma, não como um contraponto, mas como meio de escape ou tática de criação, proponho a forma “com”, no caso, a forma "com amizade". Dito de outra forma, proponho pensarmos a amizade como o espaço no qual podemos desenvolver talentos necessários para criamos formas difirentes de ser e viver para além do mundo capitalista. Assim vejamos. É sabido que em nosso espaço-tempo atual, a sociedade de mercado na qual vivemos, grande parte da nossa capacidade criativa é abduzida e direcionada para a produção de mercadorias ou prestação de serviços. Assim, enclausurados nessa forma de ser e viver, aprendemos desde cedo que a única possibilidade real e legítima de existência se encontra no consumo de mercadorias e serviços. Aqui, noções extremamente caras e importantes para a vida humana são entendidas ou reproduzidas de maneira rasteira, um bom exemplo é a noção de liberdade, que passou a ser, nada mais nada menos, que a capacidade de usar o cartão de crédito. É nesse espaço, nesse ambiente, nesse momento e nesse tempo que a forma “com amizade” se apresenta como a porta de saída, a escada de emergência, a possibilidade de fuga deste que é um mundo que não possibilita nenhuma referência coerente ou segura na qual pudéssemos nos apoiar que não seja ele mesmo, o mundo do capitalismo, que na sua forma de ser é esquizofrênico por definição. Por conta disso, ou seja, por conta e contra um capitalismo que colonizou todas as formas de relação, que monetarizou as formas de ser e viver, a amizade é aquele território no qual as relações ai possíveis podem construir e possibilitar aquele apoio, aquela abertura de caminho que nos deixa - nós e o outro - ser e viver para além daquilo que as relações de mercado esperam de nós. É a possibilita de viver diferente, de viver a diferença, principalmente a diferença ética e estética contra a monetarização da vida. A diferença que possibilita que a potência de vida exploda de forma fulgurante, se rebelando e rebolando expressividade gratuita e libertadora..
Mas aqui vale uma ressalva schopenhaueriana:
Do mesmo modo que o papel-moeda circula no lugar da prata, também no mundo, no lugar da estima verdadeira e da amizade autêntica, circulam as suas demonstrações exteriores e os seus gestos imitados do modo mais natural possível. Por outro lado, poder-se-ia perguntar se há pessoas que de fato merecem essa estima e essa amizade. Em todo o caso, dou mais valor aos abanos de cauda de um cão leal do que a cem daquelas demonstrações e gestos.

A amizade verdadeira e genuína pressupõe uma participação intensa, puramente objetiva e completamente desinteressada no destino alheio; participação que, por sua vez, significa identificarmo-nos de fato com o amigo. Ora, o egoísmo próprio à natureza humana é tão contrário a tal sentimento, que a amizade verdadeira pertence àquelas coisas que não sabemos se são mera fábula ou se de fato existem em algum lugar, como as serpentes marinhas gigantes. Todavia, há muitas relações entre os homens que, embora se baseiem essencialmente em motivos egoístas e ocultos de diversos tipos, passam a ter um grão daquela amizade verdadeira e genuína, o que as enobrece ao ponto de poderem, com certa razão, ser chamadas de amizade nesse mundo de imperfeições. Elas elevam-se muito acima dos vínculos ordinários, cuja natureza é tal, que não trocaríamos mais nenhuma palavra com a maioria dos nossos bons conhecidos, se ouvíssemos como falam de nós na nossa ausência.

A amizade, como experiência única, é a possibilidade de conviver com alguém que nos possibilite desenvolver os talentos. Para compreendermos um pouco o que isso significa devemos partir, infelizmente, do óbvio, o que seja: não podemos cair na armadilha de acreditar que a amizade é um produto que pode ser encomendado, comprado ou adquirido, que custa barato, que é manipulável ou descartável. Muito pelo contrário, a experiência da amizade é um acontecimento, uma experiência rara e única. Um acontecimento que, como diria Nietzsche, nos eleva para além dos olhos daqueles que não sabem voar. Ela, a amizade, não nasce de alguma forma de desespero, por isso ela é maior do que Deus, já que Deus, como bem afirma Cioran, é um desespero que começa onde todos os outros acabam.
Em uma carta inexistente para Clarice (a Lispector), essa amiga que nunca soube quem sou, disse:
Sim, Clarice, liberdade é pouco. O que você e eu desejamos talvez tenha um nome e se chama amizade, pois liberdade sem esse outro é não suficiente. Eu e você temos várias caras. Concordo, uma é quase bonita, outra é quase feia. Somos um o quê? Somos mesmo quase tudo. Mas entre esse tudo um que vale realmente a pena é ser amigo. Você também fala do valor dos nossos defeitos, que cortá-los pode ser perigoso, que nunca sabemos “qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro”, mas quem melhor que os amigos para entendê-los e direcioná-los? É você também quem diz que não quer “ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido”. Diz ainda que não quer “uma verdade inventada”. Mas eu te pergunto Clarice, o que são as verdades a não ser coisas inventadas? Invenções essas que se tornam mais bonitas quando inventadas com os amigos.

 Alexsandro

A arte de resistir

Uma vida vivida em meio às inseguranças e incertezas diminui ou mesmo tira completamente a capacidade de compreender os limites aos quais a vida se encontra submetida. Tais limites ficam ainda mais difíceis de serem compreendidos quando falta a capacidade de imaginar formas alternativas de vida e de convívio. Capacidade esta que só pode ser trabalhada e aprimorada pelo questionamento, pois, quando há questionamentos sobre a validade de algo é porque não se tem o que realmente se quer ou porque não se tem certeza se aquilo que se possui é ou não o que realmente se quer. É neste sentido que podemos afirmar que evitar fazer perguntas, evitar o questionamento ou mesmo não saber questionar é a melhor forma de barrar qualquer processo de libertação, é a melhor forma de impedir a vida de se expressar como uma arte de resistir ao que nos constrange.

Alexsandro

03/12/2012

Por uma receita de bem viver

Sim, todo mundo quer saber quem de fato é e onde se encontra. Todo mundo quer saber no que se encaixa, qual seu lugar e propósito no mundo. Ninguém quer viver a esmo ou sentir-se um ninguém. Por isso gastamos muito tempo tentando ser o que os outros querem que sejamos e isso por variados motivos, alguns até que justos, por exemplo, quando se trata de uma questão de sobrevivência. Não é bom passar a imagem de fracassado - imaginamos que os outros não nos aceitarão se formos um fracasso. Gostaríamos de ser celebridades, deuses do olimpo, mas as celebridades são falsos humanos, elas não existem como são apresentadas, são apenas recortes de momentos, recortes esses que qualquer um pode fazer - podemos recortar a vida do mais miserável ser humano e mostrar só o que há de legal na experiência dele. E quanto aos deuses, simplesmente não existem. Também buscamos receitas de bem viver, mas tais receitas não funcionam para a maioria das pessoas, o que isso significa? Não muita coisa, também nada muito simples. Significa apenas que não existe receita infalível. Ou, que é a hipótese que aposto, cada um tem que inventar a sua receita de bem viver. Acho isso muito legal, pois abre uma imensa possibilidade de libertação de tudo aquilo que nos aprisiona. Pois se existisse uma receita para o bem viver ficaríamos prisioneiros da receita, logo ela viraria uma doutrina do bem viver e no limite uma ditadura, algo fascista.
Claro que no mercado das realizações há muita oferta de receitas para o bem viver. Há algumas que, por exemplo, apostam no amor, no dinheiro, no trabalho, na religião ou nos filhos, todavia, em nenhuma dessas apostas há garantias de realização. No que devemos apostar, então? Não sei. E se soubesse não diria, pois esse é um trabalho de todos e de cada um, qual seja, inventar a sua receita de bem viver. É um trabalho solitário e delicado.
Há uma espécie de problema que chamo de problema delicado. O problema de querer que a receita que inventamos ou descobrimos sirva para todos. É aqui que o bicho pega. Nem sempre os outros estarão dispostos a participar da nossa receita de bem viver. E tudo vai ficando mais complicado quando entendemos que a relação com os outros ganha importância no fato de que só por meio dos outros posso ser salvo da insuportável leveza de ser alguém tão pouco, tão pequeno, mesquinho, quase nada ou ninguém. A minha fragilidade só pode ser superada no outro e com o outro, nas relações que construo com os outros. Mas quem é esse outro ou outros? Eu não sei, cada um tem que descobrir, cada um tem seu outro, seus outros. De outra parte existe o problema da solidão: ter que entender que a receita é minha e os outros não têm nenhuma responsabilidade sobre ela, que os outros não têm obrigação de participar dela.


Alexsandro

12/11/2012

Adaptação e aceitação

A nossa tão admirada capacidade de adaptação, vista como um dos segredos do nosso sucesso evolutivo, desemboca na nossa capacidade de viver em agrupamentos cada vez maiores, onde procriamos em condições que qualquer outro macaco decente julgaria insuportáveis, ou seja, do ponto de vista biológico, a gente aceita tudo, muito mais do que deveria.

Alexsandro

11/11/2012

Futebol: chutando a cara do outro

O futebol é um bom exemplo do quanto a fé cega cria formas nada pacíficas de experiências quanto ao respeito às diferenças. Cada vez que uma bandeira é hasteada em nome de qualquer time e quando esta bandeira é defendida contra todo e qualquer bom senso, é sinal que estamos caminhando em um terreno minado de bombas prestes a explodir na nossa cara. Os debates sobre futebol demonstram o quanto não sabemos levar em consideração o ponto de vista do outro e que não entendemos bem o universo deste esporte.
 
 
Alexsandro

Ceticismo básico

Busque ser cético. Jamais acredite em idéias que se querem verdadeiras por si mesmas. Se apegue as possibilidades dos fatos. Recuse qualquer explicação que se queira universal. Todos os fenômenos são arbitrários.

Todos nós somos filhos do nosso tempo. Não somos soberanos diante do mundo e do tempo. Não somos soberanos de nós mesmos. Somos finitos no tempo e no espaço. Do que sabemos, só sabemos um pouco. Das outras épocas sabemos muito menos. Somos prisioneiros de uma época, a nossa época. Não existe a máquina do tempo que nos faça ultrapassar a fronteira que limita o momento. Somos, falamos e pensamos no momento. Tudo o que somos, falamos e pensamos é limitado ao nosso tempo e ao nosso espaço.

Não existem verdades a serem descobertas, existem discursos a serem produzidos.

Somos sujeitos subjetivados, construídos sobre discursos que nos constituem. Estamos presos a tais discursos.
 
Sobre homens e mulheres não há muito para saber. Embora muito a ser feito.

Alexsandro

Expectativa

A expectativa é a ansiedade pelo prever, pela possibilidade de determinar, de instituir o futuro. A expectativa se liga a noção e a sensação de controle. É a eliminação da surpresa, do devir. A expectativa lida com o futuro de forma ansiosa. Ela gera um canibalismo do tempo presente, o tempo presente sendo devorado, o nosso próprio tempo sendo devorado por nós mesmos. Como devoradores do tempo, para nós ele já não flui, ele é algo que deve ser ultrapassado. Para ultrapassarmos o tempo, o devoramos. É assim que a expectativa paralisa e esvazia o presente, exaure, cega, estreita e fecha os horizontes.


Alexsandro

06/11/2012

Simples assim

Um corrupto? Olhe-se no espelho.

O maior dos segredos: A maioria das pessoas procuram esconder o fato de não saberem o motivo pelo qual vivem.

A fotografia é nosso desejo de não ser real. Procuramos na ilusão de um momento teatral alguém melhor do que o que realmente somos.

Conforme-se, fotos bonitas são apenas uma questão de ângulo e luz, nossa cara de fato não é como aparece nas fotos - se de fato nos víssemos de frente, teríamos uma surpresa desastrosa.

Direito à vida? Direito à morte? Quanta bobagem, viver e morrer não são um direito.

Alexsandro

30/10/2012

Liberdade, esterelidade e tédio

A liberdade pode ser compreendida como o momento em que não precisamos criar coisa alguma – pura esterilidade; nenhuma pressão interior ou exterior para se fazer coisa alguma, nenhum projeto, nada a conquistar, nenhum lugar para ir, nenhum movimento a ser feito, nada é criado, nada é destruído. Liberdade não é simplesmente a possibilidade de fazer algo, mas também a possibilidade de não fazer nada.

Alexsandro

Sofrimento e justiça

O sentimento de justiça muitas vezes sustenta a esperança daqueles que sofrem. É comum ouvirmos conselhos e comentários quando estamos sofrendo por uma dor, por um dano causado por alguém ou estamos envolvidos em alguma situação mais delicada. Todos nós já ouvimos ou mesmo falamos coisas do tipo: “Ele(a) ainda vai pagar. Você se sente assim agora? Depois ele (a) vai se sentir muito pior, você vai ver. Afinal, aqui se faz, aqui se paga”. Mas pergunto: será que isso realmente acontece? Enquanto sofremos, como estão os causadores do nosso sofrimento? Depois de ferido por alguém o que devo fazer? Assumo o papel de vítima? Sou mesmo uma vítima da crueldade ou mesmo da insensibilidade do outro? Devo esperar que o outro venha a sofrer como eu? E o sofrimento do outro será suficiente para calar a minha dor?

Alexsandro

Dor e decisão


Grandes decisões podem ser tomadas nos momentos de tristeza e angústia, fazendo com que toda uma vida mude. Alguns são capazes de usufruir desse momento, corrigir algumas coisas, crescer e amadurecer com tudo isso. Já os despreparados ou mais fracos, simplesmente definham.

Alexsandro

20/10/2012

Os Especialistas da Alma e as Tecnologias da Satisfação



O Estado moderno se desenvolveu tornando os indivíduos parte dele. Essa integração se deu sob a condição de que a cada um foi dada uma individualidade sujeitada a um conjunto de mecanismos específicos. O Estado lançou sobre os indivíduos um tipo tal de administração que, entre outros aspectos, buscou agregar aos seus objetivos as aptidões pessoais e subjetivas de cada um por meio da utilização de estratégias sociais e políticas de governo e do estabelecimento de instituições e técnicas de gerenciamento e legalização. É neste sentido que a subjetividade entra nos 
cálculos das forças políticas no que diz respeito ao estado da nação, às possibilidades e aos problemas enfrentados pelo país, às prioridades e às políticas. Os governos e os partidos de todos os matizes políticos têm formulado políticas, movimentado toda uma maquinaria, estabelecido burocracias e promovido iniciativas para regular a conduta dos cidadãos através de uma ação sobre suas capacidades e propensões mentais (Rose, 1999, 31).
Os investimentos sobre a subjetividade dos indivíduos na produção de significados e posições de sujeito são amplos e profundos.
Quando ministros, altos funcionários e relatórios oficiais se preocupam com a eficiência militar e pensam em ajustar o homem ao posto de trabalho, quando constroem a produtividade industrial em termos da motivação e satisfação do trabalhador, ou quando definem como um problema o crescimento do divórcio, formulando-o em termos das tensões psicológicas do casamento, significa que a “alma” do cidadão entrou de forma direta no discurso político e na prática do governo (Rose, 1999, 31).
Há por parte dos governos um desejo sempre crescente em ampliar e legitimar seus exercícios de autoridade, lembrando que, seguindo a perspectiva sugerida por Foucault: “O que é importante para nossa modernidade, para nossa atualidade, não é tanto a estatização da sociedade mas o que chamaria de governamentalização do Estado” (1992, 292).
Esta governamentalização é por ele definida como sendo, entre outras coisas:
O conjunto constituído pelas instituições, procedimentos, análises e reflexões, cálculos e táticas que permitem exercer esta forma bastante especifica e complexa de poder, que tem por alva a população, por forma principal de saber a economia política e por instrumentos técnicos essenciais os dispositivos de segurança. (1992, 291/ 292).
Foucault compreende assim o governo como uma arte e uma atividade que penetra todos os espaços, que a tudo alcança, a todos atinge, de forma que não somos, por conta disto, os formuladores e realizadores autônomos de projetos individuais. Os discursos que proclamam que os indivíduos estão aptos a fazerem escolhas racionais, que são seres autônomos, no sentido de que não estão sob o controle de ninguém, que são capazes de demandarem seus desejos e os mecanismos pelos quais estes podem ser concretizados fariam parte de um mito, seriam parte de uma ferramenta de subjetivação que tornariam a apreensão e compreensão de nós mesmos uma estratégia de governo. Neste sentido, o individuo seria uma produção do poder e do saber. No livro Vigiar e Punir é mostrado um conjunto de procedimentos pelos quais técnicas disciplinares presentes em diversas instituições são utilizadas para tornar os sujeitos dóceis e úteis, que dentro de vários campos discursivos a construção do eu é uma atividade exercida por outros sujeitos, pelo poder/saber ai estabelecido. Foucault nos põe diante das tecnologias de dominação, que, possuindo como alvo principal o corpo, visam tornar o sujeito obediente. O que chama a atenção nesse momento é o quanto este tipo de tecnologia encontra-se disseminada, o quanto métodos que permitem o controle detalhado das operações do corpo são hoje utilizados no sentido mesmo de impor sobre os sujeitos uma relação de docilidade-utilidade.
Tendo como referência o encaminhamento acima apontado, nos interessa aqui apresentar algumas discussões sobre a fabricação de pessoas enquanto sujeitos no interior de certos aparatos de subjetivação, ou seja, como certos discursos são eles próprios produtores de sujeitos.
Rose aponta para o aparecimento de uma expertise da subjetividade. Esta seria composta por profissionais que especializados no eu, mais especificamente, se dizendo capazes de diagnosticar causas e apresentando soluções para os mais diversos problemas. Juntamente com psicólogos (clínicos, ocupacionais, educacionais), fariam parte desta expertise
Trabalhadores do serviço social, gerenciadores pessoais, pessoas encarregadas de  acompanhar condenados em liberdade condicional, conselheiros e terapeutas de diferentes escolas  e orientações têm baseado sua reivindicação do direito à autoridade e legitimidade social na sua capacidade de compreender os aspectos psicológicos da pessoa e de agir sobre eles, ou de aconselhar outros sobre o que fazer (1999, 33).
São estes os engenheiros da alma humana, ainda segundo Rose; para mim, os especialistas da alma, fomentadores de novos discursos e novas relações de poder-saber sobre o eu. São os gerenciadores desses discursos, aqueles que os fazem circular. Um especialista da alma é aqui definido como um tipo que interpreta e determina verdades subjacentes das quais e sobre as quais os sujeitos não estão conscientes. Ele se apresenta como portador de técnicas pelas os sujeitos pode atingir as verdades que precisam para ser aquilo que o especialista determinou como sendo a identidade a ser buscada ou assumida. Nesse modelo o processo se dar no sentido de tornar o sujeito um determinado tipo de sujeito. O resultado é que o sujeito aqui implicado acaba caindo numa malha de controle extremamente articulado entre uma terapêutica de moldagem e uma pedagogia de ação. O discurso de tais especialistas prega a crença segunda a qual é possível chegar a verdade essencial sobre o próprio eu, sendo eles os mediadores entre o eu e as verdades sobre este eu. Aqui os sujeitos tornam-se um objeto de saber em dois sentidos: para si e para os outros – ao ouvir e ao assumir tal verdade, o indivíduo conhece a si próprio e torna-se conhecido para os outros, num processo que é, como dito acima, ao mesmo tempo terapêutico, pedagógico e controlador.
Nesse tipo de discurso a realidade reflete-se no espelho da “mesmidade”. Na “mesmidade” também vinga um discurso da semelhança como uma imposição a todos os indivíduos e grupos de uma pretensa descrição verdadeira do mundo, como a única porta de acesso à realidade: sejam semelhantes a isso ou aquilo, sejam semelhantes a quem é feliz, a quem é magro, bonito, aventureiro, esperto, famoso, empreendedor, rico, ético, a quem faz sucesso. Ai o infinito jogo do tornar atual, atualizado, novo, inovado, é sempre trazido à tona, é sempre lembrado, como se assim fizesse frente às circunstâncias que se expressam no presente e que devem ser superadas em prol daquilo que o especialista apresenta. Entretanto, o processo se revela como apenas um eterno reproduzir do mesmo, traduzido em termos tais como: restaurar, reafirmar, reformar, readaptar, etc. É a busca por um alojamento cômodo do e no presente, o estabelecimento de figuras e mapas fixos, fazendo da inquestionabilidade a força motriz, fermentando o homogêneo, reduzindo os trajetos, estendendo o contínuo. É a lógica do Uno atuando, fomentando consenso, buscando sustentar uma lógica que, segundo entendemos, passa pelo apelo da manutenção de uma dada identidade que deve ser experimentada e acolhida por todos aqueles que venham a cair dentro deste campo discursivo, de forma tal que se sintam fazendo parte de uma comunidade cujas crenças, valores, maneiras de pensar, moral, códigos de ação devam ser assumidos por todos os membros do mesmo modo.
A esses especialistas da alma vinculamos as tecnologias da satisfação, ou mais especificamente aquele tipo de discurso que constrói um sujeito sempre em busca de satisfação. O modelo básico do discurso das tecnologias da satisfação pode ser definido como uma espécie de receituário que indica caminhos ou métodos que podem tornar o sujeito satisfeito tanto consigo mesmo quanto com o percurso traçado por/para ele. Este tipo de discurso se revela disciplinar tanto pelo fato de definir o tipo especifico de sujeito da satisfação, quanto por indicar como o sujeito vai chegar a ser aquilo ou aquele que o especialista apontou como sendo o tipo de sujeito ideal para um tal tipo de satisfação, por exemplo. Embora simplesmente o fato de se estar no meio do processo já seja o suficiente para que este sujeito seja controlado, individualizado e normalizado, no sentido foucaultiano dos termos, uma vez que há todo um regime de policiamento no intuito de determinar até que ponto os sujeitos estão satisfeito consigo e com as coisas as quais está conectado ou não.
É interessante notar que estas tecnologias não se apresentam como sendo práticas constitutivas, como práticas pedagógicas, como produtora de sujeitos, mas, pelo contrário, se colocam apenas como mediadoras, como apenas portadoras dos recursos para o desenvolvimento dos indivíduos. Fica suprimida a ação produtiva desses discursos enquanto estratégia de construção de sujeitos. Desta forma podemos entender o quanto essas tecnologias não são estratégias neutras, elas, ao vincular poder e saber, politizam o corpo, subjetivam os sujeitos.
Nesse tipo de tecnologia o sujeito deve se sentir satisfeito não quando possuir um conjunto particular de competências, habilidades e conhecimentos, mas se puder ser definido como aquele que materializa em si capacidades e disposições pragmáticas. A medida da satisfação do sujeito consigo mesmo é algo totalmente arbitrário, entretanto seu campo de atuação é nítido, o lugar de sujeito que se ocupa naquele momento. O critério de avaliação pode ser definido na relação do sujeito consigo e é determinado por expressões tais como
“autoconhecimento”, “auto-estima”, “autocontrole”, “autoconfiança”, “autonomia”, “auto-regulação”, “autodisciplina”. Essas formas de relação do sujeito consigo mesmo podem ser expressadas quase sempre em termos de ação, com um verbo reflexivo: conhecer-se, estimar-se, controlar-se, impor-se normas, regular-se, disciplinar-se, etc. (Larrosa, 2000, 38)
As tecnologias do eu presentes nessas tecnologias da satisfação agiriam no sentido de capacitar os sujeitos para que estes ajam sobre seus corpos, almas, pensamentos e ações. Como se essa possibilidade de relação reflexiva da pessoa consigo mesma oferecesse ou fosse o caminho essencialmente humano de se chegar a uma consciência de si, juntamente com a obtenção de um poder de fazer coisas consigo mesma, sobretudo quando isso significa a possibilidade de se obter felicidade, sabedoria, riqueza e realização.


Alexsandro

Obras citadas
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. 25ªedição. Petrópolis: Vozes, 1999.
LARROSA, Jorge. Tecnologias do eu e educação, in: SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). O sujeito da educação. 4ªedição. Petrópolis: Vozes, 2000.
ROSE, Nikolas. Governando a alma: a formação do eu privado, in: SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Liberdades reguladas. 2ªedição. Petrópolis: Vozes, 1999.

27/09/2012

O inferno e o paraíso


A coisa mais difícil para todos nós é admitir-se como alguém que contribui para manutenção do inferno ou como alguém que é parte integrante dele. Pelo contrário, é mais fácil nos vemos como pessoas que anunciam o paraíso, que contribui para sua manutenção, como sábio que pode guiar a todos para ele.
Entendo o que Sartre quis dizer quando afirmou que “o inferno são os outros”. Mas convenhamos, o paraíso também são os outros, mesmo que não seja fácil estabelecer a diferença entre um tipo de pessoa e outro. ¿O que fazer? Não sei, mas Italo Calvino nos deixou uma luz que pode servir de indicação:

Há duas maneiras de não sofrer. A primeira parece fácil para a maioria das pessoas e consiste em aliar-se ao inferno até não mais senti-lo. A segunda é difícil e exige aprendizado continuo e constante e consiste em saber quem e o quê, no meio do inferno, que não é inferno e preservá-lo e abrir espaço!

Alexsandro