O Estado moderno se desenvolveu
tornando os indivíduos parte dele. Essa integração se deu sob a condição de que
a cada um foi dada uma individualidade sujeitada a um conjunto de mecanismos
específicos. O Estado lançou sobre os indivíduos um tipo tal de administração
que, entre outros aspectos, buscou agregar aos seus objetivos as aptidões
pessoais e subjetivas de cada um por meio da utilização de estratégias sociais
e políticas de governo e do estabelecimento de instituições e técnicas de
gerenciamento e legalização. É neste sentido que a subjetividade entra nos
cálculos
das forças políticas no que diz respeito ao estado da nação, às possibilidades
e aos problemas enfrentados pelo país, às prioridades e às políticas. Os
governos e os partidos de todos os matizes políticos têm formulado políticas,
movimentado toda uma maquinaria, estabelecido burocracias e promovido
iniciativas para regular a conduta dos cidadãos através de uma ação sobre suas
capacidades e propensões mentais (Rose, 1999, 31).
Os investimentos sobre a subjetividade
dos indivíduos na produção de significados e posições de sujeito são amplos e
profundos.
Quando
ministros, altos funcionários e relatórios oficiais se preocupam com a
eficiência militar e pensam em ajustar o homem ao posto de trabalho, quando
constroem a produtividade industrial em termos da motivação e satisfação do
trabalhador, ou quando definem como um problema o crescimento do divórcio, formulando-o
em termos das tensões psicológicas do casamento, significa que a “alma” do
cidadão entrou de forma direta no discurso político e na prática do governo
(Rose, 1999, 31).
Há por parte dos governos um desejo
sempre crescente em ampliar e legitimar seus exercícios de autoridade,
lembrando que, seguindo a perspectiva sugerida por Foucault: “O que é
importante para nossa modernidade, para nossa atualidade, não é tanto a
estatização da sociedade mas o que chamaria de governamentalização do Estado”
(1992, 292).
Esta governamentalização é por ele
definida como sendo, entre outras coisas:
O
conjunto constituído pelas instituições, procedimentos, análises e reflexões,
cálculos e táticas que permitem exercer esta forma bastante especifica e
complexa de poder, que tem por alva a população, por forma principal de saber a
economia política e por instrumentos técnicos essenciais os dispositivos de
segurança. (1992, 291/ 292).
Foucault compreende assim o governo
como uma arte e uma atividade que penetra todos os espaços, que a tudo alcança,
a todos atinge, de forma que não somos, por conta disto, os formuladores e
realizadores autônomos de projetos individuais. Os discursos que proclamam que
os indivíduos estão aptos a fazerem escolhas racionais, que são seres autônomos,
no sentido de que não estão sob o controle de ninguém, que são capazes de
demandarem seus desejos e os mecanismos pelos quais estes podem ser
concretizados fariam parte de um mito, seriam parte de uma ferramenta de
subjetivação que tornariam a apreensão e compreensão de nós mesmos uma
estratégia de governo. Neste sentido, o individuo seria uma produção do poder e
do saber. No livro Vigiar e Punir é mostrado um conjunto de procedimentos pelos
quais técnicas disciplinares presentes em diversas instituições são utilizadas
para tornar os sujeitos dóceis e úteis, que dentro de vários campos discursivos
a construção do eu é uma atividade exercida por outros sujeitos, pelo
poder/saber ai estabelecido. Foucault nos põe diante das tecnologias de
dominação, que, possuindo como alvo principal o corpo, visam tornar o sujeito
obediente. O que chama a atenção nesse momento é o quanto este tipo de
tecnologia encontra-se disseminada, o quanto métodos que permitem o controle
detalhado das operações do corpo são hoje utilizados no sentido mesmo de impor
sobre os sujeitos uma relação de docilidade-utilidade.
Tendo como referência o encaminhamento
acima apontado, nos interessa aqui apresentar algumas discussões sobre a
fabricação de pessoas enquanto sujeitos no interior de certos aparatos de
subjetivação, ou seja, como certos discursos são eles próprios produtores de
sujeitos.
Rose aponta para o aparecimento de uma
expertise da subjetividade. Esta seria composta por profissionais que
especializados no eu, mais especificamente, se dizendo capazes de diagnosticar
causas e apresentando soluções para os mais diversos problemas. Juntamente com
psicólogos (clínicos, ocupacionais, educacionais), fariam parte desta expertise
Trabalhadores
do serviço social, gerenciadores pessoais, pessoas encarregadas de acompanhar condenados em liberdade
condicional, conselheiros e terapeutas de diferentes escolas e orientações têm baseado sua reivindicação
do direito à autoridade e legitimidade social na sua capacidade de compreender
os aspectos psicológicos da pessoa e de agir sobre eles, ou de aconselhar
outros sobre o que fazer (1999, 33).
São estes os engenheiros da alma
humana, ainda segundo Rose; para mim, os especialistas da alma, fomentadores de
novos discursos e novas relações de poder-saber sobre o eu. São os
gerenciadores desses discursos, aqueles que os fazem circular. Um especialista
da alma é aqui definido como um tipo que interpreta e determina verdades
subjacentes das quais e sobre as quais os sujeitos não estão conscientes. Ele se
apresenta como portador de técnicas pelas os sujeitos pode atingir as verdades
que precisam para ser aquilo que o especialista determinou como sendo a
identidade a ser buscada ou assumida. Nesse modelo o processo se dar no sentido
de tornar o sujeito um determinado tipo de sujeito. O resultado é que o sujeito
aqui implicado acaba caindo numa malha de controle extremamente articulado
entre uma terapêutica de moldagem e uma pedagogia de ação. O discurso de tais
especialistas prega a crença segunda a qual é possível chegar a verdade
essencial sobre o próprio eu, sendo eles os mediadores entre o eu e as verdades
sobre este eu. Aqui os sujeitos tornam-se um objeto de saber em dois sentidos:
para si e para os outros – ao ouvir e ao assumir tal verdade, o indivíduo
conhece a si próprio e torna-se conhecido para os outros, num processo que é,
como dito acima, ao mesmo tempo terapêutico, pedagógico e controlador.
Nesse
tipo de discurso a realidade reflete-se no espelho da “mesmidade”. Na
“mesmidade” também vinga um discurso da semelhança como uma imposição a todos
os indivíduos e grupos de uma pretensa descrição verdadeira do mundo, como a
única porta de acesso à realidade: sejam semelhantes a isso ou aquilo, sejam
semelhantes a quem é feliz, a quem é magro, bonito, aventureiro, esperto,
famoso, empreendedor, rico, ético, a quem faz sucesso. Ai o infinito jogo do
tornar atual, atualizado, novo, inovado, é sempre trazido à tona, é sempre
lembrado, como se assim fizesse frente às circunstâncias que se expressam no presente
e que devem ser superadas em prol daquilo que o especialista apresenta.
Entretanto, o processo se revela como apenas um eterno reproduzir do mesmo,
traduzido em termos tais como: restaurar, reafirmar, reformar, readaptar, etc.
É a busca por um alojamento cômodo do e no presente, o estabelecimento de
figuras e mapas fixos, fazendo da inquestionabilidade a força motriz,
fermentando o homogêneo, reduzindo os trajetos, estendendo o contínuo. É a
lógica do Uno atuando, fomentando consenso, buscando sustentar uma lógica que,
segundo entendemos, passa pelo apelo da manutenção de uma dada identidade que
deve ser experimentada e acolhida por todos aqueles que venham a cair dentro
deste campo discursivo, de forma tal que se sintam fazendo parte de uma
comunidade cujas crenças, valores, maneiras de pensar, moral, códigos de ação
devam ser assumidos por todos os membros do mesmo modo.
A esses especialistas da alma
vinculamos as tecnologias da satisfação, ou mais especificamente aquele tipo de
discurso que constrói um sujeito sempre em busca de satisfação. O modelo básico
do discurso das tecnologias da satisfação pode ser definido como uma espécie de
receituário que indica caminhos ou métodos que podem tornar o sujeito
satisfeito tanto consigo mesmo quanto com o percurso traçado por/para ele. Este
tipo de discurso se revela disciplinar tanto pelo fato de definir o tipo
especifico de sujeito da satisfação, quanto por indicar como o sujeito vai
chegar a ser aquilo ou aquele que o especialista apontou como sendo o tipo de
sujeito ideal para um tal tipo de satisfação, por exemplo. Embora simplesmente
o fato de se estar no meio do processo já seja o suficiente para que este
sujeito seja controlado, individualizado e normalizado, no sentido foucaultiano
dos termos, uma vez que há todo um regime de policiamento no intuito de
determinar até que ponto os sujeitos estão satisfeito consigo e com as coisas
as quais está conectado ou não.
É interessante notar que estas
tecnologias não se apresentam como sendo práticas constitutivas, como práticas
pedagógicas, como produtora de sujeitos, mas, pelo contrário, se colocam apenas
como mediadoras, como apenas portadoras dos recursos para o desenvolvimento dos
indivíduos. Fica suprimida a ação produtiva desses discursos enquanto estratégia
de construção de sujeitos. Desta forma podemos entender o quanto essas
tecnologias não são estratégias neutras, elas, ao vincular poder e saber,
politizam o corpo, subjetivam os sujeitos.
Nesse tipo de tecnologia o sujeito
deve se sentir satisfeito não quando possuir um conjunto particular de
competências, habilidades e conhecimentos, mas se puder ser definido como
aquele que materializa em si capacidades e disposições pragmáticas. A medida da
satisfação do sujeito consigo mesmo é algo totalmente arbitrário, entretanto
seu campo de atuação é nítido, o lugar de sujeito que se ocupa naquele momento.
O critério de avaliação pode ser definido na relação do sujeito consigo e é
determinado por expressões tais como
“autoconhecimento”,
“auto-estima”, “autocontrole”, “autoconfiança”, “autonomia”, “auto-regulação”,
“autodisciplina”. Essas formas de relação do sujeito consigo mesmo podem ser
expressadas quase sempre em termos de ação, com um verbo reflexivo:
conhecer-se, estimar-se, controlar-se, impor-se normas, regular-se,
disciplinar-se, etc. (Larrosa, 2000, 38)
As tecnologias do eu presentes nessas
tecnologias da satisfação agiriam no sentido de capacitar os sujeitos para que
estes ajam sobre seus corpos, almas, pensamentos e ações. Como se essa
possibilidade de relação reflexiva da pessoa consigo mesma oferecesse ou fosse
o caminho essencialmente humano de se chegar a uma consciência de si,
juntamente com a obtenção de um poder de fazer coisas consigo mesma, sobretudo
quando isso significa a possibilidade de se obter felicidade, sabedoria,
riqueza e realização.
Alexsandro
Obras citadas
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. 25ªedição.
Petrópolis: Vozes, 1999.
LARROSA, Jorge. Tecnologias do eu e educação, in: SILVA,
Tomaz Tadeu da (org.). O sujeito da educação. 4ªedição. Petrópolis:
Vozes, 2000.
ROSE, Nikolas. Governando a alma: a formação do eu
privado, in: SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Liberdades reguladas.
2ªedição. Petrópolis: Vozes, 1999.