Há hoje no nosso mundo muitas formas de pessoas "sem": os sem terra, os
sem tetos, os sem namorado, os sem mídia, os sem emprego, os sem
universidade, etc. Para cada uma dessas formas de "sem" visualizamos um universo de
consequências, prejuízos, desconfortos, feridas no corpo, na mente e no
mundo.
Além dessas formas de "sem" há muitas outras, aqui vou
considerar apenas uma. A forma de “sem” que, assim como as anteriores, é
nefasta para o coração humano e para Gaia. Tal forma de “sem” diz
respeito aos "sem talentos".
Schopenhauer, em certo momento, faz um
prognostico terrível sobre os efeitos que as relações maternas e
paternas podem produzir em alguém. Não precisamos concordar que isso
seja unânime, mas tem lá sua plausibilidade. Assim ele diz:
"Alguém
que tenha tido uma desmiolada como mãe e um indolente como pai jamais
escreverá uma Ilíada; nem mesmo se estudar em seis universidades."
Se
considerarmos um pouco o que Schopenhauer disse podemos compreender o
quanto é realmente complicado para qualquer um de nós começarmos a
desenvolver qualquer talento em um meio que não favorece, principalmente
quando o principal obstáculo é pai ou mãe (ou os dois juntos, o que é
ainda pior).
Todos nós, homens e mulheres, fazemos parte de uma
espécie que se desenvolveu graças a sua capacidade criativa, aos
talentos que possibilitaram sobrevivência em um mundo exigente. Foi por
meio da evolução de um imenso número de talentos que chegamos aonde
chegamos como espécie. Não há como hierarquizar um em detrimento de
outro, todos foram e são fundamentais de alguma forma em dadas
circunstâncias. Todavia, entre todos, um que foi e é imprescindível é o talento de inventar formas de ser e de viver.
Através de inúmeras
tentativas, ora acertando, ora errando, algumas boas outras más,
inventamos ao longo do tempo e do espaço formas de ser e de viver e
assim continuamos. Mas tal talento necessita de tempo e de espaço
para se desenvolver e prosperar. E mais do que qualquer outra coisa, essa
nossa capacidade criativa precisa ser estimulada, cativada, cuidada,
enfim, precisa de apoio. Mas não qualquer apoio, precisa de um apoio que
abra caminho, que deixe ser, que possibilite que a vida aconteça, que a
diferença se faça presente, que a potência de vida exploda de forma
fulgurante.
Para que nosso talento de criar formas de ser e de viver possa prosperar precisamos de apoio. Só amparados em alguém podemos escapar da forma “sem talento" e nos tornamos alguém "com talento" (talento que trato aqui como a possibilidade de criarmos formas de vida). Desta forma, não como um contraponto, mas como meio de escape ou tática de criação, proponho a forma “com”, no caso, a forma "com amizade". Dito de outra forma, proponho pensarmos a amizade como o espaço no qual podemos desenvolver talentos necessários para criamos formas difirentes de ser e viver para além do mundo capitalista. Assim vejamos. É sabido que em nosso espaço-tempo atual, a sociedade de mercado na qual vivemos, grande parte da nossa capacidade criativa é abduzida e direcionada para a produção de mercadorias ou prestação de serviços. Assim, enclausurados nessa forma de ser e viver, aprendemos desde cedo que a única possibilidade real e legítima de existência se encontra no consumo de mercadorias e serviços. Aqui, noções extremamente caras e importantes para a vida humana são entendidas ou reproduzidas de maneira rasteira, um bom exemplo é a noção de liberdade, que passou a ser, nada mais nada menos, que a capacidade de usar o cartão de crédito. É nesse espaço, nesse ambiente, nesse momento e nesse tempo que a forma “com amizade” se apresenta como a porta de saída, a escada de emergência, a possibilidade de fuga deste que é um mundo que não possibilita nenhuma referência coerente ou segura na qual pudéssemos nos apoiar que não seja ele mesmo, o mundo do capitalismo, que na sua forma de ser é esquizofrênico por definição. Por conta disso, ou seja, por conta e contra um capitalismo que colonizou todas as formas de relação, que monetarizou as formas de ser e viver, a amizade é aquele território no qual as relações ai possíveis podem construir e possibilitar aquele apoio, aquela abertura de caminho que nos deixa - nós e o outro - ser e viver para além daquilo que as relações de mercado esperam de nós. É a possibilita de viver diferente, de viver a diferença, principalmente a diferença ética e estética contra a monetarização da vida. A diferença que possibilita que a potência de vida exploda de forma fulgurante, se rebelando e rebolando expressividade gratuita e libertadora..
Mas aqui vale uma ressalva schopenhaueriana:
Do
mesmo modo que o papel-moeda circula no lugar da prata, também no
mundo, no lugar da estima verdadeira e da amizade autêntica, circulam as
suas demonstrações exteriores e os seus gestos imitados do modo mais
natural possível. Por outro lado, poder-se-ia perguntar se há pessoas
que de fato merecem essa estima e essa amizade. Em todo o caso, dou mais
valor aos abanos de cauda de um cão leal do que a cem daquelas
demonstrações e gestos.
A amizade verdadeira e genuína pressupõe uma
participação intensa, puramente objetiva e completamente desinteressada
no destino alheio; participação que, por sua vez, significa
identificarmo-nos de fato com o amigo. Ora, o egoísmo próprio à natureza
humana é tão contrário a tal sentimento, que a amizade verdadeira
pertence àquelas coisas que não sabemos se são mera fábula ou se de fato
existem em algum lugar, como as serpentes marinhas gigantes. Todavia,
há muitas relações entre os homens que, embora se baseiem essencialmente
em motivos egoístas e ocultos de diversos tipos, passam a ter um grão
daquela amizade verdadeira e genuína, o que as enobrece ao ponto de
poderem, com certa razão, ser chamadas de amizade nesse mundo de
imperfeições. Elas elevam-se muito acima dos vínculos ordinários, cuja
natureza é tal, que não trocaríamos mais nenhuma palavra com a maioria
dos nossos bons conhecidos, se ouvíssemos como falam de nós na nossa
ausência.
A amizade, como experiência única, é a possibilidade de
conviver com alguém que nos possibilite desenvolver os talentos. Para
compreendermos um pouco o que isso significa devemos partir,
infelizmente, do óbvio, o que seja: não podemos cair na armadilha de
acreditar que a amizade é um produto que pode ser encomendado, comprado
ou adquirido, que custa barato, que é manipulável ou descartável. Muito
pelo contrário, a experiência da amizade é um acontecimento, uma
experiência rara e única. Um acontecimento que, como diria Nietzsche,
nos eleva para além dos olhos daqueles que não sabem voar. Ela, a
amizade, não nasce de alguma forma de desespero, por isso ela é maior do
que Deus, já que Deus, como bem afirma Cioran, é um desespero que
começa onde todos os outros acabam.
Em uma carta inexistente para Clarice (a Lispector), essa amiga que nunca soube quem sou, disse:
Sim,
Clarice, liberdade é pouco. O que você e eu desejamos talvez tenha um
nome e se chama amizade, pois liberdade sem esse outro é não suficiente.
Eu e você temos várias caras. Concordo, uma é quase bonita, outra é
quase feia. Somos um o quê? Somos mesmo quase tudo. Mas entre esse tudo
um que vale realmente a pena é ser amigo. Você também fala do valor dos
nossos defeitos, que cortá-los pode ser perigoso, que nunca sabemos
“qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro”, mas quem melhor
que os amigos para entendê-los e direcioná-los? É você também quem diz
que não quer “ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é
passível de fazer sentido”. Diz ainda que não quer “uma verdade
inventada”. Mas eu te pergunto Clarice, o que são as verdades a não ser
coisas inventadas? Invenções essas que se tornam mais bonitas quando
inventadas com os amigos.
Alexsandro