18/12/2012

Autoengano como motivação e a fuga da morte



O fato é que precisamos ultravalorizar a nós mesmos e todos os nossos objetivos por uma simples questão de autopreservação. A motivação humana sustenta-se neste tipo de autoengano. Talvez isso não seja tão ruim, só é estranho. (André Díspore Cancian)

 O autoengano é a chave para suportar a vida e fazer dela algo que valha alguma coisa. Tudo que fazemos, o empenho que investimos, os sentidos que desejamos encontrar nas coisas com as quais nos envolvemos funcionam como uma armadura protetora diante do absurdo da vida. Mais do que apenas uma forma de preenchermos o tempo de uma vida, são o energético motivacional da vida. Caminhamos buscando uma direção que nos pareça a menos angustiante e dolorosa possível. Valorizamos as coisas mais idiotas ou esperamos delas grandes consequências. Elevamos as expectativas a níveis que nenhum outro animal poderia sequer imaginar caso pudessem fazer. Valorizamos tanto a nós mesmos que chegamos a esquecer do básico sobre quem somos: seres mortais.

Aconteceu-nos uma coisa realmente curiosa: nós, literalmente, esquecemos de que temos de morrer. É esta a conclusão a que chegaram os historiadores depois de terem examinado todas as fontes escritas da nossa época. Uma investigação realizada nos cerca de cem mil livros de ensaio publicados nos últimos vinte anos mostra que apenas duzentos deles (0,2%, portanto) tocavam o problema da morte. Livros de medicina incluídos. (Pierre Chaunu)

Alexsandro

12/12/2012

Da amizade como acontecimento



Há hoje no nosso mundo muitas formas de pessoas "sem": os sem terra, os sem tetos, os sem namorado, os sem mídia, os sem emprego, os sem universidade, etc. Para cada uma dessas formas de "sem" visualizamos um universo de consequências, prejuízos, desconfortos, feridas no corpo, na mente e no mundo.
Além dessas formas de "sem" há muitas outras, aqui vou considerar apenas uma. A forma de “sem” que, assim como as anteriores, é nefasta para o coração humano e para Gaia. Tal forma de “sem” diz respeito aos "sem talentos".
Schopenhauer, em certo momento, faz um prognostico terrível sobre os efeitos que as relações maternas e paternas podem produzir em alguém. Não precisamos concordar que isso seja unânime, mas tem lá sua plausibilidade. Assim ele diz:
"Alguém que tenha tido uma desmiolada como mãe e um indolente como pai jamais escreverá uma Ilíada; nem mesmo se estudar em seis universidades."
Se considerarmos um pouco o que Schopenhauer disse podemos compreender o quanto é realmente complicado para qualquer um de nós começarmos a desenvolver qualquer talento em um meio que não favorece, principalmente quando o principal obstáculo é pai ou mãe (ou os dois juntos, o que é ainda pior).
Todos nós, homens e mulheres, fazemos parte de uma espécie que se desenvolveu graças a sua capacidade criativa, aos talentos que possibilitaram sobrevivência em um mundo exigente. Foi por meio da evolução de um imenso número de talentos que chegamos aonde chegamos como espécie. Não há como hierarquizar um em detrimento de outro, todos foram e são fundamentais de alguma forma em dadas circunstâncias. Todavia, entre todos, um que foi e é imprescindível é o talento de inventar formas de ser e de viver.
Através de inúmeras tentativas, ora acertando, ora errando, algumas boas outras más, inventamos ao longo do tempo e do espaço formas de ser e de viver e assim continuamos. Mas tal talento necessita de tempo e de espaço para se desenvolver e prosperar. E mais do que qualquer outra coisa, essa nossa capacidade criativa precisa ser estimulada, cativada, cuidada, enfim, precisa de apoio. Mas não qualquer apoio, precisa de um apoio que abra caminho, que deixe ser, que possibilite que a vida aconteça, que a diferença se faça presente, que a potência de vida exploda de forma fulgurante.

Para que nosso talento de criar formas de ser e de viver possa prosperar precisamos de apoio. Só amparados em alguém podemos escapar da forma “sem talento" e nos tornamos alguém "com talento" (talento que trato aqui como a possibilidade de criarmos formas de vida). Desta forma, não como um contraponto, mas como meio de escape ou tática de criação, proponho a forma “com”, no caso, a forma "com amizade". Dito de outra forma, proponho pensarmos a amizade como o espaço no qual podemos desenvolver talentos necessários para criamos formas difirentes de ser e viver para além do mundo capitalista. Assim vejamos. É sabido que em nosso espaço-tempo atual, a sociedade de mercado na qual vivemos, grande parte da nossa capacidade criativa é abduzida e direcionada para a produção de mercadorias ou prestação de serviços. Assim, enclausurados nessa forma de ser e viver, aprendemos desde cedo que a única possibilidade real e legítima de existência se encontra no consumo de mercadorias e serviços. Aqui, noções extremamente caras e importantes para a vida humana são entendidas ou reproduzidas de maneira rasteira, um bom exemplo é a noção de liberdade, que passou a ser, nada mais nada menos, que a capacidade de usar o cartão de crédito. É nesse espaço, nesse ambiente, nesse momento e nesse tempo que a forma “com amizade” se apresenta como a porta de saída, a escada de emergência, a possibilidade de fuga deste que é um mundo que não possibilita nenhuma referência coerente ou segura na qual pudéssemos nos apoiar que não seja ele mesmo, o mundo do capitalismo, que na sua forma de ser é esquizofrênico por definição. Por conta disso, ou seja, por conta e contra um capitalismo que colonizou todas as formas de relação, que monetarizou as formas de ser e viver, a amizade é aquele território no qual as relações ai possíveis podem construir e possibilitar aquele apoio, aquela abertura de caminho que nos deixa - nós e o outro - ser e viver para além daquilo que as relações de mercado esperam de nós. É a possibilita de viver diferente, de viver a diferença, principalmente a diferença ética e estética contra a monetarização da vida. A diferença que possibilita que a potência de vida exploda de forma fulgurante, se rebelando e rebolando expressividade gratuita e libertadora..
Mas aqui vale uma ressalva schopenhaueriana:
Do mesmo modo que o papel-moeda circula no lugar da prata, também no mundo, no lugar da estima verdadeira e da amizade autêntica, circulam as suas demonstrações exteriores e os seus gestos imitados do modo mais natural possível. Por outro lado, poder-se-ia perguntar se há pessoas que de fato merecem essa estima e essa amizade. Em todo o caso, dou mais valor aos abanos de cauda de um cão leal do que a cem daquelas demonstrações e gestos.

A amizade verdadeira e genuína pressupõe uma participação intensa, puramente objetiva e completamente desinteressada no destino alheio; participação que, por sua vez, significa identificarmo-nos de fato com o amigo. Ora, o egoísmo próprio à natureza humana é tão contrário a tal sentimento, que a amizade verdadeira pertence àquelas coisas que não sabemos se são mera fábula ou se de fato existem em algum lugar, como as serpentes marinhas gigantes. Todavia, há muitas relações entre os homens que, embora se baseiem essencialmente em motivos egoístas e ocultos de diversos tipos, passam a ter um grão daquela amizade verdadeira e genuína, o que as enobrece ao ponto de poderem, com certa razão, ser chamadas de amizade nesse mundo de imperfeições. Elas elevam-se muito acima dos vínculos ordinários, cuja natureza é tal, que não trocaríamos mais nenhuma palavra com a maioria dos nossos bons conhecidos, se ouvíssemos como falam de nós na nossa ausência.

A amizade, como experiência única, é a possibilidade de conviver com alguém que nos possibilite desenvolver os talentos. Para compreendermos um pouco o que isso significa devemos partir, infelizmente, do óbvio, o que seja: não podemos cair na armadilha de acreditar que a amizade é um produto que pode ser encomendado, comprado ou adquirido, que custa barato, que é manipulável ou descartável. Muito pelo contrário, a experiência da amizade é um acontecimento, uma experiência rara e única. Um acontecimento que, como diria Nietzsche, nos eleva para além dos olhos daqueles que não sabem voar. Ela, a amizade, não nasce de alguma forma de desespero, por isso ela é maior do que Deus, já que Deus, como bem afirma Cioran, é um desespero que começa onde todos os outros acabam.
Em uma carta inexistente para Clarice (a Lispector), essa amiga que nunca soube quem sou, disse:
Sim, Clarice, liberdade é pouco. O que você e eu desejamos talvez tenha um nome e se chama amizade, pois liberdade sem esse outro é não suficiente. Eu e você temos várias caras. Concordo, uma é quase bonita, outra é quase feia. Somos um o quê? Somos mesmo quase tudo. Mas entre esse tudo um que vale realmente a pena é ser amigo. Você também fala do valor dos nossos defeitos, que cortá-los pode ser perigoso, que nunca sabemos “qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro”, mas quem melhor que os amigos para entendê-los e direcioná-los? É você também quem diz que não quer “ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido”. Diz ainda que não quer “uma verdade inventada”. Mas eu te pergunto Clarice, o que são as verdades a não ser coisas inventadas? Invenções essas que se tornam mais bonitas quando inventadas com os amigos.

 Alexsandro

A arte de resistir

Uma vida vivida em meio às inseguranças e incertezas diminui ou mesmo tira completamente a capacidade de compreender os limites aos quais a vida se encontra submetida. Tais limites ficam ainda mais difíceis de serem compreendidos quando falta a capacidade de imaginar formas alternativas de vida e de convívio. Capacidade esta que só pode ser trabalhada e aprimorada pelo questionamento, pois, quando há questionamentos sobre a validade de algo é porque não se tem o que realmente se quer ou porque não se tem certeza se aquilo que se possui é ou não o que realmente se quer. É neste sentido que podemos afirmar que evitar fazer perguntas, evitar o questionamento ou mesmo não saber questionar é a melhor forma de barrar qualquer processo de libertação, é a melhor forma de impedir a vida de se expressar como uma arte de resistir ao que nos constrange.

Alexsandro

03/12/2012

Por uma receita de bem viver

Sim, todo mundo quer saber quem de fato é e onde se encontra. Todo mundo quer saber no que se encaixa, qual seu lugar e propósito no mundo. Ninguém quer viver a esmo ou sentir-se um ninguém. Por isso gastamos muito tempo tentando ser o que os outros querem que sejamos e isso por variados motivos, alguns até que justos, por exemplo, quando se trata de uma questão de sobrevivência. Não é bom passar a imagem de fracassado - imaginamos que os outros não nos aceitarão se formos um fracasso. Gostaríamos de ser celebridades, deuses do olimpo, mas as celebridades são falsos humanos, elas não existem como são apresentadas, são apenas recortes de momentos, recortes esses que qualquer um pode fazer - podemos recortar a vida do mais miserável ser humano e mostrar só o que há de legal na experiência dele. E quanto aos deuses, simplesmente não existem. Também buscamos receitas de bem viver, mas tais receitas não funcionam para a maioria das pessoas, o que isso significa? Não muita coisa, também nada muito simples. Significa apenas que não existe receita infalível. Ou, que é a hipótese que aposto, cada um tem que inventar a sua receita de bem viver. Acho isso muito legal, pois abre uma imensa possibilidade de libertação de tudo aquilo que nos aprisiona. Pois se existisse uma receita para o bem viver ficaríamos prisioneiros da receita, logo ela viraria uma doutrina do bem viver e no limite uma ditadura, algo fascista.
Claro que no mercado das realizações há muita oferta de receitas para o bem viver. Há algumas que, por exemplo, apostam no amor, no dinheiro, no trabalho, na religião ou nos filhos, todavia, em nenhuma dessas apostas há garantias de realização. No que devemos apostar, então? Não sei. E se soubesse não diria, pois esse é um trabalho de todos e de cada um, qual seja, inventar a sua receita de bem viver. É um trabalho solitário e delicado.
Há uma espécie de problema que chamo de problema delicado. O problema de querer que a receita que inventamos ou descobrimos sirva para todos. É aqui que o bicho pega. Nem sempre os outros estarão dispostos a participar da nossa receita de bem viver. E tudo vai ficando mais complicado quando entendemos que a relação com os outros ganha importância no fato de que só por meio dos outros posso ser salvo da insuportável leveza de ser alguém tão pouco, tão pequeno, mesquinho, quase nada ou ninguém. A minha fragilidade só pode ser superada no outro e com o outro, nas relações que construo com os outros. Mas quem é esse outro ou outros? Eu não sei, cada um tem que descobrir, cada um tem seu outro, seus outros. De outra parte existe o problema da solidão: ter que entender que a receita é minha e os outros não têm nenhuma responsabilidade sobre ela, que os outros não têm obrigação de participar dela.


Alexsandro