19/01/2014

O mundo distópico de Harrison Bergeron

"Harrison Bergeron" é um conto de Kurt Vonnegut. Foi publicado pela primeira vez em 1961. A história se passa em uma América distópica, no ano de 2081. É uma ficção científica cheia de ironia e crítica, sobretudo ao autoritarismo e o que ele usa para cooptar e controlar, no caso do conto vemos a ideia de igualdade sendo usada com esse intento.

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Harrison Bergeron
Por Kurt Vonnegut (1961)


O ano era 2081, e todos finalmente eram iguais. Eles não eram apenas iguais diante de Deus e da lei, eles eram iguais em todos os sentidos. Ninguém era mais esperto do que ninguém. Ninguém era mais bonito do que ninguém. Ninguém era mais forte ou mais rápido do que qualquer outra pessoa. Toda essa igualdade devia-se aos Decretos 211º, 212º e 213º da Constituição e também pela incansável vigilância dos agentes do Nivelador Geral (NG).
Entretanto, algumas coisas não iam muito bem. Era Abril e muitos estavam ansiosos por ainda não ser primavera. E foi nesse mês que os homens do NG levaram Harrison, de 14 anos, filho de George e Hazel Bergeron. Foi trágico, mas George e Hazel não podia pensar sobre o que estava acontecendo, para eles era difícil fazer isso. Hazel tinha uma inteligência perfeitamente média, o que significava que ela não poderia pensar em nada muito complicado, exceto em coisas muito pontuais. George possuía uma inteligência acima do normal, por isso tinha de usar um pequeno rádio em seu ouvido. Ele foi obrigado por lei a usá-lo todo o tempo. Ligado a um transmissor do governo, emitia um sinal que produzia um ruído a cada vinte segundos ou menos. Sua finalidade era manter as pessoas como George sem a vantagem injusta de terem cérebros mais capazes que os dos demais. 
George e Hazel estavam assistindo televisão. Havia lágrimas nas bochechas de Hazel, mas ela não tinha claro o que se passava.
Na tela da televisão bailarinas dançavam. 
A campainha soou na cabeça de George. Seus pensamentos fugiram em pânico, como bandidos de um alarme. 
--Essa foi uma dança muito bonita, disse Hazel. 
--Hein? Disse George. 
--Essa dança, foi bonita, disse Hazel. 
--Sim, disse George.
Ele tentou pensar um pouco sobre as bailarinas. Elas não eram realmente muito boas – não fizeram nada melhor do que qualquer outra pessoa teria feito. Elas estavam sobrecarregadas com pesos amarrados em seus corpos e sacos de chumbo fino, e os seus rostos estavam mascarados, de modo que ninguém via um gesto livre e gracioso ou um rosto bonito, nada que pudesse fazer com que alguém se sentisse diferente. Tais apetrechos niveladores tinha por função fazer com que todas se sentissem iguais.
Dentro George nascia uma pequena sensação, uma vaga noção de que talvez as “boas” dançarinas não merecessem ser prejudicadas daquela forma pelos pesos niveladores em seus corpos e que elas deveriam dançar livremente. Mas tal pensamento não foi muito longe, um ruído do seu rádio de ouvido invadiu seus pensamentos. 
George fez uma careta. Assim como fizeram duas das oito bailarinas. 
Hazel o viu estremecer. Não tendo nenhuma noção do que se passava, ela perguntou a George que som era aquele. 
-- Soou como se alguém tivesse batido numa garrafa de leite com um martelo de borracha, disse George.
-- Eu acho que seria realmente interessante se todos pudessem ouvir sempre sons diferentes, disse Hazel com um pouco de inveja e continuou: 
-- Todas as coisas que eles poderiam ouvir.
-- Hum, disse George.
-- Só que, se eu fosse o Nivelador Geral, você sabe o que eu faria? disse Hazel. Hazel, com um ar de autoridade muito próximo ao exibido por Daina Moon Glampers, assistente muito próxima do Nivelador Geral. 
-- Se eu fosse Diana Moon Glampers, disse Hazel, eu colocaria sons de sinos no domingo, apenas badaladas, em honra da religião.
-- Mas eu poderia pensar se fosse apenas sinos, disse George
-- Bem, talvez fazê-los bem alto, disse Hazel e continuou:
-- Eu acho que seria um bom Nivelador Geral.
-- Bom, como qualquer outra pessoa, disse George.
-- Porque não melhor do que o normal? disse Hazel.
-- Certo, disse George.
Neste momento ele começou a pensar sobre seu filho anormal que agora estava na cadeia. E quando uma imagem de Harrison começou a se formar em sua mente, explodiu uma saudação de 21 tiros na cabeça fazendo-o parar com o devaneio.
-- Querido! disse Hazel, o que foi, você está com sono?
Um ar de cansado tomou conta de George, ele ficou pálido e começou a tremer, enquanto lágrimas enchiam seus olhos vermelhos.
Duas das oito bailarinas desabaram no chão do estúdio enquanto seguravam seus sacos niveladores.
-- De repente você parece tão cansado, disse Hazel. Por que você não se deita no sofá, pode descansar o seu saco nivelador sobre os travesseiros.
Ela estava se referindo aos 47 quilos de chumbo fino em um saco de lona que foi trancado em volta do pescoço de George.
-- Vá em frente e descanse a bolsa um pouco, disse ela. Eu não me importo se você não for igual a mim por um momento.
George segurou o saco com as mãos. 
--Eu não me importo, disse ele. Eu não os noto mais. São uma parte de mim.
-- Você parece tão cansado ultimamente usando os sacos, disse Hazel. Se houvesse alguma forma de fazemos um pequeno buraco no fundo do saco para deixar cair apenas algumas bolas de chumbo. Apenas algumas.
-- São dois anos de prisão e multa de dois mil dólares por cada bola que eu deixar cair, disse George. Isso não me parece um bom negócio.
-- Se você pudesse ficar sem eles, mesmo que fosse por pouco tempo, depois do trabalho, quando você chega em casa, disse Hazel.
-- Entenda que não compete a ninguém decidir sobre isso. Você acabou de descrever uma forma de romper a lei. Se eu posso romper com a lei, disse George, então outras pessoas poderiam tentar fazer o mesmo em cada lugar e logo estaríamos de volta à idade das trevas, com todo mundo competindo contra todos. Você não iria gostar que isso acontecesse, não é mesmo?
-- Eu odiaria isso, disse Hazel.
-- Aí está, disse George. Se as pessoas começassem a romper com a lei um pouco de cada vez, o que você acha que poderia acontece com a sociedade?
Se Hazel não era capaz de chegar a uma resposta para esta pergunta, George não poderia fornecer. Uma sirene soava em sua cabeça.
-- Reconheço que tudo poderia desabar, disse Hazel.
-- O que seria? George disse inexpressivamente.
-- A sociedade, disse Hazel incerta. Não foi isso que você acabou de dizer?
-- Quem sabe? disse George.
O programa de televisão foi subitamente interrompido por um boletim de notícias. Não ficou claro, em primeiro lugar, do que se tratava o boletim, uma vez que o locutor, como todos os locutores, tinha um sério problema de dicção que o impedia de fala com desenvoltura. Por cerca de meio minuto e em um estado de grande excitação, o locutor tentou dizer "Senhoras e Senhores". Quando finalmente desistiu, entregou o boletim para uma das bailarinas de ler.
-- Está tudo bem. Disse Hazel disse sobre o locutor. Ele tentou. Isso é o que importa. Ele tentou fazer o melhor que podia com o que Deus lhe deu. Acho que ele deveria ter um aumento do seu salário por tenta de forma tão obstinada.
-- Senhoras e Senhores, disse a bailarina, começando a leitura do boletim. 
Ela, a bailarina, devia ser extraordinariamente bonita, pois a máscara que usava era horrível. E era fácil ver que ela era a mais forte e mais graciosa de todos os dançarinos, pois os pesos niveladores que usava eram tão grandes como aqueles usados pelos homens mais fortes. E ela teve que pedir desculpas por conta de sua voz, que era uma voz muito injusta para uma mulher se comparada as outras. Sua voz era luminosa, melódica e quente, atemporal. 
-- Desculpe-me, ela disse, e começou de novo, tentando disfarçar sua voz para não chamar atenção.
-- Harrison Bergeron, de quatorze anos, disse ela tentando parecer rouca, acaba de escapar da prisão, onde foi detido por suspeita de conspiração para derrubar o governo. Ele é um gênio e um atleta, e está sem seus apetrechos niveladores, por isso deve ser considerado como extremamente perigoso.
Uma fotografia de Harrison Bergeron apareceu na tela, primeiro mostrou seu rosto de frente, em seguida de perfil, depois de corpo inteiro. A foto mostrava o comprimento total de Harrison contra um fundo graduado em metros e centímetros. Ele tinha exatamente dois metros de altura.
O resto da aparição de Harrison foi para fazer dele um monstro e sobre seus apetrechos niveladores. Jamais havia nascido alguém com tantas vantagens. Ele superava os obstáculos mais rápido do que os homens do Nivelador Geral poderiam pensa-los. 
Em vez de um radinho no ouvido para provocar uma deficiência mental, ele usava um tremendo par de fones de ouvidos e óculos com lentes grossas onduladas. Os óculos tinham a intenção de fazê-lo não só meio cego, mas para dar-lhe agudas dores de cabeça, além de toda sucata que foi pendurada em cima do seu corpo. Normalmente havia certa simetria, um asseio militar quanto às deficiências provocadas pelos apetrechos em detrimento das pessoas fortes, mas Harrison parecia um ferro-velho ambulante. Usava o peso de uns três homens. E para compensar sua boa aparência os homens do Nivelador Geral faziam-no usar uma bola de borracha vermelha no nariz, além das sobrancelhas raspadas e seus dentes brancos cobertos por adesivos pretos.
-- Se você ver esse rapaz, disse a bailarina, não, eu repito, não... – falava como quem tentava argumentar.
De repente houve um barulho de uma porta sendo arrancada de suas dobradiças.
Gritos e gritos de consternação vieram do aparelho de televisão. A fotografia de Harrison Bergeron na tela saltou de novo e de novo, como se dançasse ao som de um terremoto. 
George Bergeron identificou corretamente o terremoto, como não deveria ser, pois como muitos, deveria ter sido apenas um momento no qual sua própria casa tinha dançado com a mesma melodia ruim. 
-- Meu Deus, disse George, deve ser Harrison!
O lampejo de realidade logo explodiu de sua mente pelo som de um acidente de carro em sua cabeça provocado por seu apetrecho nivelador.
Quando George conseguiu abrir os olhos novamente a fotografia de Harrison tinha ido embora. A vida e a respiração de Harrison encheu a tela.
O barulho dos seus apetrechos tilintavam como sucata e contrastavam com sua enorme cara de palhaço. Harrison parou no centro do estúdio. A maçaneta da porta do estúdio que, fora arrancada a pouco, ainda estava em sua mão. Bailarinas, técnicos, músicos e locutores se encolheram de joelhos diante dele esperando para morrer.
-- Eu sou o Imperador! Exclamou Harrison. Vocês ouviram? Eu sou o Imperador! Todos devem fazer o que eu dizer! Ele bateu o pé e o estúdio tremeu.
-- Mesmo eu estando assim, aleijado, mancando, enojado, sou um governante maior do que qualquer homem que já viveu! Agora observem eu me tornar o que eu posso me tornar! Gritou ele.
Harrison rasgou as alças do seu apetrecho nivelador como papel de seda molhado, rasgou as tiras feitas para suportar 2500 quilos. Os pesos niveladores de Harrison caíram no chão.
Harrison empurrou seus polegares sob a barra do cadeado que prendia seu arnês à cabeça. A haste estalou como aipo. Harrison esmagou seus fones de ouvido e óculos contra a parede.
Jogou fora o nariz de borracha, revelando um homem impressionante, um Thor, deus do trovão.
-- Vou agora escolher minha imperatriz! Ele disse olhando para as pessoas encolhidas.
-- Que uma das mulheres ouse reivindicar seu lugar como minha companheira e seu trono!
Um momento se passou, em seguida, uma bailarina se levantou, balançando como um salgueiro.
Harrison arrancou o nivelador mental de sua orelha, quebrou seus niveladores físicos como quem parte um biscoito fino. Por fim, lhe tirou a máscara.
Ela era incrivelmente bonita.
-- Agora, disse Harrison tomando-lhe a mão, vamos mostrar a todos o significado da palavra dança?
-- Música, ele ordenou.
Os músicos voltaram para as suas cadeiras e Harrison os livra dos seus niveladores de desvantagens.
-- Toquem o seu melhor e eu vou fazer de você barões, duques e condes, disse ele.
A música começou. Soou normal, boba, algo falso. Mas Harrison apontou para dois músicos, acenou-lhes com um cassetete dizendo que a música deveria ser tocada como eles tocavam. Ele bateu de volta em suas cadeiras.
A música começou de novo e foi muito melhor.
Harrison e sua imperatriz apenas ouviam a música com um ar solene, enquanto ouviam era como se sincronizassem seus batimentos cardíacos. Eles mudaram os seus pesos para seus dedos. Harrison colocou suas mãos grandes na cintura fina da menina, deixando-a sentir a leveza que logo seria dela. E então, em uma explosão de alegria e graça, ela se lançou no ar! Não foram só as leis da terra que foram abandonadas naquele momento, mas a lei da gravidade e as leis do movimento como um todo.
Eles cambalearam, giraram, giraram, pularam, saltaram, deram cambalhotas e giraram. Eles dançavam como borboletas diante da lua.
O teto do estúdio era de trinta metros de altura, mas a cada salto eles chegavam mais perto dele. Tornou-se evidente a sua intenção de beijar o teto. E eles o beijaram.
E então, neutralizando a gravidade com amor e pura vontade, permaneceram suspensos a algumas polegadas do chão, e eles se beijaram por um longo, longo tempo.
Foi então que Diana Moon Glampers, a Niveladora representante do governo, entrou no estúdio com uma espingarda de cano duplo calibre dez. Ela disparou duas vezes, e o imperador e a imperatriz foram mortos antes de caírem no chão.
Diana Moon Glampers carregou a arma novamente. Ela apontou para os músicos e disse-lhes que tinham dez segundos para colocarem de volta seus apetrechos niveladores novamente.
Foi então que o tubo de televisão dos Bergeron queimou.
Hazel virou-se para comentar sobre o apagão para George. Mas George tinha ido para a cozinha pegar uma lata de cerveja.
George voltou com a cerveja, fez uma pausa, enquanto um sinal saindo do seu apetrecho auricular o sacudiu para cima. E então ele se sentou novamente. 
-- Você estava chorando? Perguntou a Hazel.
-- Sim, disse ela .
-- Por qual motivo? Perguntou ele.
-- Eu esqueci, disse ela. Alguma coisa muito triste na televisão.
-- O que foi? disse ele.
-- É todo o tipo de confusão na minha mente, disse Hazel.
-- Esqueça as coisas tristes, disse George.
-- É o que eu sempre faço, disse Hazel.
-- Essa é minha garota, disse George. Ele fez uma careta. Ouve o som de uma arma de rebitagem em sua cabeça.
-- Caramba. Eu poderia dizer que esse era diferente, disse Hazel.
-- Você pode dizer isso de novo, disse George .
--Caramba, disse Hazel, Eu poderia dizer que esse era diferente.

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12/01/2014

A infância não é da criança

Como ainda podemos afirmar que a infância é um tempo de coisas boas, sobretudo quando os adultos teimam em estragá-la, tirando dela seus prazeres e possibilidades? Poucas coisas humanas são tão vigiada e regulada quanto a infância. Poucas coisas sofrem as intervenções dos adultos quanto a infância. 
A infância não é da criança, é um território ocupado pelos adultos que, sabendo ou não, agem como fascistas, ocupando todos os espaços e fazendo daquilo que a principio é pura energia e exaltação, um lugar de conflitos e batalhas no qual só há perdedores: crianças transformadas em adultos que transformarão outras crianças em adultos.

Alexsandro

O "eu" como farsa

A ideia de ser quem se deseja ser é uma farsa. Uma farsa época-cultural. Ninguém nunca foi e nunca será quem deseja ser. O motivo é bem simples: esse “ser” que nasceria da nossa vontade e independente de qualquer determinação e que produziria o “eu” é pura ficção, alienação ou crença; todo e qualquer “eu” nada mais é que produção em massa e serial na linha de montagem de toda e qualquer cultura que necessite da noção de “eu” para se manter. 
É simples assim, a noção de “eu” é um produto cultural como qualquer outro e enquanto tal exerce uma força de pressão avassaladora sobre todos, sujeitando todos às suas determinações. Assumimos o “eu” que a cultura deseja. A conclusão a que se pode chegar é mais simples ainda: o “eu” é uma forma de assujeitamento cultural e como tal se encontra a serviço das mais diversas instituições que compõem uma sociedade.
Logo, uma sociedade na qual todos produzem o “eu” que deseja ser é uma impossibilidade. Se cada um fizesse nascer o “eu” que deseja a sociedade não se manteria, pois o caos tomaria conta.

P. S. 1: Quer ver o mundo tomado pelo caos? Crie e seja o “eu” que deseja.

P. S. 2: Há os resistentes, aqueles que tentam ser outra coisa que não um “eu”, mas esse serão classificados sob diversas designações conforme a época e o contexto cultural e para contê-los existem várias instituições de repressão, reeducação, segregação e/ou eliminação.

Alexsandro

05/01/2014

Para que monografia? Ou notas para uma escrita subterrânea

De todo escrito só me agrada aquilo que uma pessoa 
escreveu com o seu sangue. Escreve com sangue e
aprenderás que o sangue é espírito.
Nietzsche


Para que monografia? Acredito que essa seja uma das primeiras perguntas que vem a cabeça de um estudante ao se deparar com a obrigação de ter que escrever uma monografia, dentro ou para conclusão de um curso. Uma outra questão diz respeito exatamente ao como desenvolver uma ideia que ao cabo traga o com cunho de trabalho acadêmico, dito, científico.
Partindo de um rápido pressuposto apontado por Marilena Chaui que diz que “em nossa cultura e em nossa sociedade, costumamos considerar que alguma coisa só tem o direito de existir se tiver alguma finalidade prática, muito visível e de utilidade imediata” (1997, 13), a resposta mais lógica a questão “para que monografia?” ou, se quiserem, “para que serve uma monografia?”, podemos responder que, dentro de uma conotação prática, serve para conclusão de curso, serve para testar os conhecimentos do estudante, serve para que ele se aprimore dentro de uma área de conteúdo, e se nenhuma destas respostas convencerem, a simples obrigação de fazer já é motivo suficiente.
Voltemos mais um pouco sobre a citação de Marilena Chaui e tentemos perceber em que implica “considerar que alguma coisa só tem o direito de existir se tiver alguma finalidade prática, muito visível e de utilidade imediata”. O cenário no qual vivemos, no qual o pensamento se encontra, vem povoado de imagens, sons, sensações perturbadoras e ao mesmo tempo extraordinárias. Diante de tal mundo é interessante questionar o que pode o pensamento em momentos assim. Cada cenário traz em si a possibilidade de fundação de novos territórios de reflexão, de criação de nexos conceituais, tendo estes a possibilidade de serem fortes o suficiente para dar conta do emaranhado que é, como dito antes, o cenário no qual vivemos.
Não temos mais um único tempo, hoje falamos em tempos; não temos mais uma única forma de pensamento, hoje falamos em pensamentos, múltiplos circuitos de pensamentos pululam os objetos passíveis à investigação que levam o pensar a limites extremos. A cada instante chegamos ao limite do que pode ser pensado, para logo em seguida ultrapassarmos esse limite a uma velocidade que em certos casos nem o próprio pensamento pode acompanhar. Mas aqui corremos riscos, assim como se corre risco em qualquer situação limite. Nada parecer ser fixo, ao contrário, como diria Marx, “tudo que é sólido se desmancha no ar” e o que é mais aterrador, a uma velocidade desconcertante, cujo risco que advém daí é, sobretudo, o de desguarnecer a reflexão, tornando-a insossa.
É costume aconselhar aqueles que pretendem escrever algo, comunicar uma ideia, que ao fazê-lo dentro do campo científico levem em consideração um conjunto de procedimentos de cunho metodológico, uma vez que assim fazendo o dito escrito ganharia legitimidade, força e, sobretudo, seria ouvido. A explicação desse fato ou dessa imposição, como o bem disse Bourdieu (1994), encontra-se na questão de quem tem o direito de dizer a verdade, de comunicar uma ideia, de quem possui o monopólio da atividade científica, o mando da competência científica, entendida enquanto capacidade de falar e de agir legitimamente no campo de um saber específico. Por essa lógica, perguntar sobre fundamentação teórica, sobre procedimentos metodológicos é, entre outras questões, interrogar sobre quem me autoriza a falar sobre isso desta ou daquela forma, quais as melhores referências ou autoridades que potencializam o conjunto de argumentos sobre essa ou aquela ideia, qual método, qual corrente teórica é mais ou menos válida para este ou aquele problema.
Porém, para além destas questões, que no fundo soam um tanto fascista, porque não tentamos aceitar o convite daqueles que nos querem fazer ousar além dos modelos oficiais e sagrados dos preceitos do discurso científicos. Descobrindo com alegria que na feitura de uma monografia há a possibilidade da criação, de fazer funcionar, sem ter que definir, a liberdade (no sentido de um movimento de libertação), de ir contra uma regra, de propor algo.

Criar (e também descobrir) significa sempre quebrar uma regra; seguir a regra é mera rotina, mais do mesmo – não um ato de criação. (Bauman: 2001, 237)

Nestas condições as leituras que venhamos a fazer, o fundamento que buscamos dar aquilo que venhamos a escrever tragam como finalidade não o fardo de buscar uma sintonia com as grandes verdades deste mundo, mas, se desejamos e possuímos algo a escrever, escrevemo-lo, sem termos de perguntar se alguma vez teremos ou não o direito de fazê-lo. Nestas condições as leituras que venhamos a fazer tragam como finalidade nos recolocar diante das questões que nos incomoda, assumindo que escrever é batalhar, que escrever é uma batalha consigo e com outros.
Não é intenção deste artigo definir a priori qual o melhor caminho para construção de uma monografia, mas simplesmente provocar, chamar a atenção para um fato um tanto quanto peculiar à atividade de investigador, qual seja, que posição assumir diante do fato de ter que fazer uma monografia, diante do fato de ter que assumir um objeto de pesquisa, de ter que projetar um resultado dentro do campo científico. Sugestão para tal questão: assumir o subterrâneo da escrita.
O que significaria assumir o subterrâneo da escrita? Entre outras coisas significaria não desejar se projetar através da construção de grandes resultados, mas que assume antes de tudo que escrever

(...) têm por objetivo revelar a possibilidade de viver em conjunto de modo diferente, com menos miséria ou sem miséria: essa possibilidade diariamente subtraída, subestimada ou não-percebida.(...) [Assumir que] não há escolha entre maneiras “engajadas” e “neutras” de [escrever]. Uma [escrita] descomprometida é uma impossibilidade. (Bauman: 2001, 246)

Assumir uma escrita subterrânea significa educar-se incansavelmente; adquirir uma capacidade crítica pessoal e uma capacidade de pensar por si; aprender a ver, habituando o olho no repouso e na paciência; dominar o instinto do saber a qualquer preço, utilizando este princípio seletivo: só aprender aquilo que puder viver e abominar tudo aquilo que instrui sem aumentar ou estimular a atividade; manter uma postura artística diante da existência, trabalhando como artista a obra cotidiana; dar à vida o valor de um instrumento e de um meio de conhecimento, procedendo de modo que os falsos caminhos, os erros, as ilusões, as paixões, as esperanças possam conduzir a um único objetivo – a educação de si próprio. 
Só há uma escrita que vale por aquilo que ela é: aquela que faz da e na emancipação um dos seus territórios. Quem quer que impeça ou inviabilize ou mesmo tente cerca este território, não deixando que os outros se emancipem, é fascista. O exercício não fascista da escrita, que nos possibilita pôr em questão o sentido e a forma como vivemos e fazemos as coisas, as posturas políticas que, conscientemente ou não, negamos ou afirmamos em nossa prática, as noções, os (pre)conceitos, os valores, as morais que nos movem a assumi-las, os exercícios teórico que nos movem, necessita da construção de um outro ambiente, ambiente esse que traz na emancipação seu alimento de sobrevivência. A escritura de uma monografia sem um trabalho de emancipação é máquina de controle.


Alexsandro



Referências
BAUMAN, Zymunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.
BOURDIEU, Pierre. O campo científico. In: Renato Ortiz (Org.). Sociologia. São Paulo: Ática, 1994.
CHAUI, Marilena. Convite à Filosofia. 9ªedição. São Paulo: Ática, 1997.