05/01/2014

Para que monografia? Ou notas para uma escrita subterrânea

De todo escrito só me agrada aquilo que uma pessoa 
escreveu com o seu sangue. Escreve com sangue e
aprenderás que o sangue é espírito.
Nietzsche


Para que monografia? Acredito que essa seja uma das primeiras perguntas que vem a cabeça de um estudante ao se deparar com a obrigação de ter que escrever uma monografia, dentro ou para conclusão de um curso. Uma outra questão diz respeito exatamente ao como desenvolver uma ideia que ao cabo traga o com cunho de trabalho acadêmico, dito, científico.
Partindo de um rápido pressuposto apontado por Marilena Chaui que diz que “em nossa cultura e em nossa sociedade, costumamos considerar que alguma coisa só tem o direito de existir se tiver alguma finalidade prática, muito visível e de utilidade imediata” (1997, 13), a resposta mais lógica a questão “para que monografia?” ou, se quiserem, “para que serve uma monografia?”, podemos responder que, dentro de uma conotação prática, serve para conclusão de curso, serve para testar os conhecimentos do estudante, serve para que ele se aprimore dentro de uma área de conteúdo, e se nenhuma destas respostas convencerem, a simples obrigação de fazer já é motivo suficiente.
Voltemos mais um pouco sobre a citação de Marilena Chaui e tentemos perceber em que implica “considerar que alguma coisa só tem o direito de existir se tiver alguma finalidade prática, muito visível e de utilidade imediata”. O cenário no qual vivemos, no qual o pensamento se encontra, vem povoado de imagens, sons, sensações perturbadoras e ao mesmo tempo extraordinárias. Diante de tal mundo é interessante questionar o que pode o pensamento em momentos assim. Cada cenário traz em si a possibilidade de fundação de novos territórios de reflexão, de criação de nexos conceituais, tendo estes a possibilidade de serem fortes o suficiente para dar conta do emaranhado que é, como dito antes, o cenário no qual vivemos.
Não temos mais um único tempo, hoje falamos em tempos; não temos mais uma única forma de pensamento, hoje falamos em pensamentos, múltiplos circuitos de pensamentos pululam os objetos passíveis à investigação que levam o pensar a limites extremos. A cada instante chegamos ao limite do que pode ser pensado, para logo em seguida ultrapassarmos esse limite a uma velocidade que em certos casos nem o próprio pensamento pode acompanhar. Mas aqui corremos riscos, assim como se corre risco em qualquer situação limite. Nada parecer ser fixo, ao contrário, como diria Marx, “tudo que é sólido se desmancha no ar” e o que é mais aterrador, a uma velocidade desconcertante, cujo risco que advém daí é, sobretudo, o de desguarnecer a reflexão, tornando-a insossa.
É costume aconselhar aqueles que pretendem escrever algo, comunicar uma ideia, que ao fazê-lo dentro do campo científico levem em consideração um conjunto de procedimentos de cunho metodológico, uma vez que assim fazendo o dito escrito ganharia legitimidade, força e, sobretudo, seria ouvido. A explicação desse fato ou dessa imposição, como o bem disse Bourdieu (1994), encontra-se na questão de quem tem o direito de dizer a verdade, de comunicar uma ideia, de quem possui o monopólio da atividade científica, o mando da competência científica, entendida enquanto capacidade de falar e de agir legitimamente no campo de um saber específico. Por essa lógica, perguntar sobre fundamentação teórica, sobre procedimentos metodológicos é, entre outras questões, interrogar sobre quem me autoriza a falar sobre isso desta ou daquela forma, quais as melhores referências ou autoridades que potencializam o conjunto de argumentos sobre essa ou aquela ideia, qual método, qual corrente teórica é mais ou menos válida para este ou aquele problema.
Porém, para além destas questões, que no fundo soam um tanto fascista, porque não tentamos aceitar o convite daqueles que nos querem fazer ousar além dos modelos oficiais e sagrados dos preceitos do discurso científicos. Descobrindo com alegria que na feitura de uma monografia há a possibilidade da criação, de fazer funcionar, sem ter que definir, a liberdade (no sentido de um movimento de libertação), de ir contra uma regra, de propor algo.

Criar (e também descobrir) significa sempre quebrar uma regra; seguir a regra é mera rotina, mais do mesmo – não um ato de criação. (Bauman: 2001, 237)

Nestas condições as leituras que venhamos a fazer, o fundamento que buscamos dar aquilo que venhamos a escrever tragam como finalidade não o fardo de buscar uma sintonia com as grandes verdades deste mundo, mas, se desejamos e possuímos algo a escrever, escrevemo-lo, sem termos de perguntar se alguma vez teremos ou não o direito de fazê-lo. Nestas condições as leituras que venhamos a fazer tragam como finalidade nos recolocar diante das questões que nos incomoda, assumindo que escrever é batalhar, que escrever é uma batalha consigo e com outros.
Não é intenção deste artigo definir a priori qual o melhor caminho para construção de uma monografia, mas simplesmente provocar, chamar a atenção para um fato um tanto quanto peculiar à atividade de investigador, qual seja, que posição assumir diante do fato de ter que fazer uma monografia, diante do fato de ter que assumir um objeto de pesquisa, de ter que projetar um resultado dentro do campo científico. Sugestão para tal questão: assumir o subterrâneo da escrita.
O que significaria assumir o subterrâneo da escrita? Entre outras coisas significaria não desejar se projetar através da construção de grandes resultados, mas que assume antes de tudo que escrever

(...) têm por objetivo revelar a possibilidade de viver em conjunto de modo diferente, com menos miséria ou sem miséria: essa possibilidade diariamente subtraída, subestimada ou não-percebida.(...) [Assumir que] não há escolha entre maneiras “engajadas” e “neutras” de [escrever]. Uma [escrita] descomprometida é uma impossibilidade. (Bauman: 2001, 246)

Assumir uma escrita subterrânea significa educar-se incansavelmente; adquirir uma capacidade crítica pessoal e uma capacidade de pensar por si; aprender a ver, habituando o olho no repouso e na paciência; dominar o instinto do saber a qualquer preço, utilizando este princípio seletivo: só aprender aquilo que puder viver e abominar tudo aquilo que instrui sem aumentar ou estimular a atividade; manter uma postura artística diante da existência, trabalhando como artista a obra cotidiana; dar à vida o valor de um instrumento e de um meio de conhecimento, procedendo de modo que os falsos caminhos, os erros, as ilusões, as paixões, as esperanças possam conduzir a um único objetivo – a educação de si próprio. 
Só há uma escrita que vale por aquilo que ela é: aquela que faz da e na emancipação um dos seus territórios. Quem quer que impeça ou inviabilize ou mesmo tente cerca este território, não deixando que os outros se emancipem, é fascista. O exercício não fascista da escrita, que nos possibilita pôr em questão o sentido e a forma como vivemos e fazemos as coisas, as posturas políticas que, conscientemente ou não, negamos ou afirmamos em nossa prática, as noções, os (pre)conceitos, os valores, as morais que nos movem a assumi-las, os exercícios teórico que nos movem, necessita da construção de um outro ambiente, ambiente esse que traz na emancipação seu alimento de sobrevivência. A escritura de uma monografia sem um trabalho de emancipação é máquina de controle.


Alexsandro



Referências
BAUMAN, Zymunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.
BOURDIEU, Pierre. O campo científico. In: Renato Ortiz (Org.). Sociologia. São Paulo: Ática, 1994.
CHAUI, Marilena. Convite à Filosofia. 9ªedição. São Paulo: Ática, 1997.