16/10/2011

Foucault, a interdição e a identidade

O medo de sermos deslocados em nossas frágeis e débeis certezas nos faz querer de volta a verdade fascista que nos assombrou ontem.



No primeiro parágrafo de seu texto “A ordem do discurso”, Michel Foucault diz algo que me é surpreendente:
No discurso que hoje eu devo fazer, e nos que aqui terei de fazer, durante anos talvez, gostaria de neles poder entrar sem se dar por isso. Em vez de tomar a palavra, gostaria de estar à sua mercê e de ser levado muito para lá de todo o começo possível. Preferiria dar-me conta de que, no momento de falar, uma voz sem nome me precedia desde há muito: bastar-me-ia assim deixá-la ir, prosseguir a frase, alojar-me, sem que ninguém se apercebesse, nos seus interstícios, como se ela me tivesse acenado, ao manter-se, um instante, em suspenso. Assim não haveria começo; e em vez de ser aquele de onde o discurso sai, estaria antes no acaso do seu curso, uma pequena lacuna, o ponto do seu possível desaparecimento.

Leio esta parte como uma demonstração de lucidez e clareza quanto à posição que ele próprio ocupa na ordem dos discursos: sabe que ele não é o começo e nem o fim de algo, e que o fato de ser ele a falar não é fruto senão do acaso.
Em seguida nos fala do peso da instituição, de sua ironia, das solenidades, das formas ritualizadas. Da obrigação de ter de falar, de ter de responder, de ter que ser o que fala. Mas como falar daquilo que não se tem certeza? Ou como assumir um lugar no discurso, ser aquele de onde o discurso sai quando a vontade seria não ter de começar, sem ter que falar por aquele que se encontra do lado de fora, destituindo dele a singularidade, o que pode ter de temível ou maléfico?
Mais um pouco e ele simula um dialogo entre o desejo e a instituição:
O desejo diz: "Eu, eu não queria ser obrigado a entrar nessa ordem incerta do discurso; não queria ter nada que ver com ele naquilo que tem de peremptório e de decisivo; queria que ele estivesse muito próximo de mim como uma transparência calma, profunda, indefinidamente aberta, e que os outros respondessem à minha expectativa, e que as verdades, uma de cada vez, se erguessem; bastaria apenas deixar-me levar, nele e por ele, como um barco à deriva, feliz."
E a instituição responde: "Tu não deves ter receio em começar; estamos aqui para te fazer ver que o discurso está na ordem das leis; que sempre vigiamos o seu aparecimento; que lhe concedemos um lugar, que o honra, mas que o desarma; e se ele tem algum poder, é de nós, e de nós apenas, que o recebe."

Mais um parágrafo:
Mas talvez esta instituição e este desejo não sejam mais do que duas réplicas a uma mesma inquietação: inquietação face àquilo que o discurso é na sua realidade material de coisa pronunciada ou escrita; inquietação face a essa existência transitória destinada sem dúvida a apagar-se, mas segundo uma duração que não nos pertence; inquietação por sentir nessa atividade, quotidiana e banal porém, poderes e perigos que sequer adivinhamos; inquietação de supor lutas, vitórias, ferimentos, dominações, servidões, através de tantas palavras em cujo uso há muito se reduziram as asperidade.

Dentro de um esquema eu leria assim: as inquietações do desejo e da instituição frente ao discurso que se pronuncia derivam de quatro situações:

1. “aquilo que o discurso é na sua realidade material de coisa pronunciada ou escrita“;
Transcreveria para uma interrogação: o que o discurso é na sua realidade material de coisa pronunciada ou escrita? Oferecendo a seguinte resposta: ele pode ser algo sobre o qual não temos controle, sobre o qual não sabemos ao certo o que enuncia e que essas incertezas fazem dele algo extremamente delicado já que pode nos levar para lugares e situações para os quais não estávamos preparado ou que não esperávamos encontrar.

2. “existência transitória destinada sem dúvida a apagar-se, mas segundo uma duração que não nos pertence”;
O discurso é temporal e enquanto tal tem um tempo de vida, não é eterno, sumirá. Sem data de validade, ele existe no tempo, sem tempo previsto para durar ele se desenrola.

3. uma atividade quotidiana e banal que pode conter poderes e perigos que sequer adivinhamos;
O que o discurso esconde, o que ele mostra, o que ela faz parar, o que ele move, que caminho segue, que caminho destrói, quem faz falar, quem faz calar, o que cria de novo, o que recria, o peso que adquire ao ser somado a outro discurso, os sentidos que move, os sentidos que combate, as perspectivas que apresenta, etc.

4. “inquietação de supor lutas, vitórias, ferimentos, dominações, servidões, através de tantas palavras em cujo uso há muito se reduziram as asperidades”.
A mudança dos significados das palavras e, na sua seqüência, das lutas. Lutas que foram travadas, mas cujos significados se perderem ou que hoje lemos na contramão do que ela de fato significou. Vitórias que no decorrer do tempo transmutaram seu objetivo primeiro e aquilo que foi conquista em um momento mostrou-se como derrota em outro. Enfim, ninguém pode prever o destino de um discurso: em um momento ele pode ser libertador, noutro pode ser fascista. Não há discurso neutro, não há como determinar de que lado ele estará no decorrer do tempo.
E Foucault termina esta parte do seu texto fazendo a seguinte pergunta:
Mas o que há assim de tão perigoso por as pessoas falarem, qual o perigo dos discursos se multiplicarem indefinidamente? Onde é que está o perigo?

Antes de seguir com Foucault vou abrir uma pequena brecha para citar um exemplo que espero poder ilustrar o que disse acima.
Em muitos momentos do século XX os filmes pornográficos estavam ligados não apenas às práticas libidinosas como também às criticas a repressão, sobretudo a repressão da própria libido como expoente de uma repressão geral da sociedade. Larry Flint foi um dos personagens símbolo dessa postura anarco-porno dos anos de 1970. Em muitos dos seus roteiros, por trás de muita sacanagem sexual, existiam também sacanagens políticas. Enrabar uma loira peituda, o grande símbolo da cultura americana, era um ato simbólico de enrabar os Estados Unidos. Estávamos em meio à guerra fria. Mas, como todos sabem, os Estados Unidos venceram a guerra. E a grande imagem dessa vitória, que é também uma vitória do capitalismo, é a queda do muro de Berlin. No campo da sexualidade, o equivalente pornográfico da hegemonia capitalista e americana é a queda dos pêlos pubianos. Tais quedas representaram o avanço da hegemonia americana e capitalista sobre as práticas políticas cotidianos. Assim como a queda do muro de Berlin representou um golpe nas utopias políticas do século XX, a queda dos pêlos pubianos aparece como o novo símbolo desse controle sobre o corpo e suas práticas.
Se nos anos de 1950 os filmes com a “família feliz” era o sonho dourado que saia dos cinemas e invadia os projetos pessoais, hoje percebemos que os filmes pornôs deixaram de ser lixo cinematográfico e viraram referências para muitas das práticas cotidianas. É curioso perceber que sua influência vai desde seios siliconados, pêlos depilados, práticas, posturas e posições sexuais, até a invasão do imagético cotidiano de todos em termos de relações (afetivas e sexuais) possíveis.

Voltemos então a pergunta de Foucault;
Mas o que há assim de tão perigoso por as pessoas falarem, qual o perigo dos discursos se multiplicarem indefinidamente? Onde é que está o perigo?

No decorrer de sua exposição ele apresenta a hipótese que, segundo ele próprio, era a hipótese que naquele momento norteava seu trabalho:
“suponho que em toda a sociedade a produção do discurso é simultaneamente controlada, selecionada, organizada e redistribuída por um certo número de procedimentos que têm por papel exorcizar-lhe os poderes e os perigos, refrear-lhe o acontecimento aleatório, disfarçar a sua pesada, temível materialidade.”

Em seguida temos:
É claro que sabemos, numa sociedade como a nossa, da existência de procedimentos de exclusão. O mais evidente, o mais familiar também, é o interdito. Temos consciência de que não temos o direito de dizer o que nos apetece, que não podemos falar de tudo em qualquer circunstância, que quem quer que seja, finalmente, não pode falar do que quer que seja. Tabu do objeto, ritual da circunstância, direito privilegiado ou exclusivo do sujeito que fala: jogo de três tipos de interditos que se cruzam, que se reforçam ou que se compensam, formando uma grelha complexa que está sempre a modificar-se. Basta-me referir que, nos dias que correm, as regiões onde a grelha mais se aperta, onde os buracos negros se multiplicam, são as regiões da sexualidade e as da política: longe de ser um elemento transparente ou neutro no qual a sexualidade se desarma e a política se pacifica, é como se o discurso fosse um dos lugares onde estas regiões exercem, de maneira privilegiada, algumas dos seus mais temíveis poderes. Por mais que o discurso seja aparentemente bem pouca coisa, as interdições que o atingem revelam logo, rapidamente, sua ligação com o desejo e com o poder. Nisto não há nada de espantoso, visto que o discurso — como a psicanálise nos mostrou —, não é simplesmente o que manifesta (ou esconde) o desejo; é também aquilo que é objeto do desejo; e visto que — e isso a história desde sempre o ensinou — o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas é aquilo pelo qual e com o qual se luta, é o próprio poder de que procuramos nos apoderar

Para aqueles que se consideram donos de um de um saber hermético, ostentadores de um saber(-poder), o perigo da multiplicidade dos discursos se encontra no fato dela diluir o poder dos discursos. Não seria um deslocamento ininterrupto do poder e sua posterior ridicularização a melhor maneira de combatê-lo? Contra todos os centros, nos encaminhemos para as bordas; contra toda a coerência, sejamos contraditórios; contra a normalidade, festejemos a anormalidade.
Mas antes que eu esqueça de perguntar: sobre o que falamos e qual o propósito daquilo que falamos? Ou ainda, pelo que lutamos? Se é que lutamos por alguma coisa.
O que se encontra em jogo aqui são as formas de lutas e os lutadores, quem captura e quem é capturado. Vejo na multiplicidade uma possibilidade (não garantida, claro) de confundirmos os lados da luta, de embaralharmos o baralho e deixarmos as cartas na imanência dos acontecimentos (pois não foi isso que sempre aconteceu?). Não seria mais estratégico nos colocarmos, ao menos provisoriamente e como um gatuno dos discursos, para além da dicotomia natureza/cultura e mergulharmos dentro da vastidão de possibilidades que as formas de ser e viver pode tomar? E o campo da sexualidade é uma dessas possibilidades, ou não?
Eu entendo que toda e qualquer forma de sexualidade é um agenciamento. Todas as formas de experiências corporais experimentadas por homens e mulheres foram sempre vividas dentro de um campo de agenciamento da sexualidade. Afinal, quando que homens e mulheres foram simplesmente machos e fêmeas?
Recorre-se ao conceito de natureza para se justificar uma essência sexual perdida, não sei se seguindo por esta linha de raciocínio consigamos avançar no entendimento do que se passa atualmente no campo da sexualidade.
Em termos teóricos, gosto do conceito de territorialização definido por Guattari e Deleuze, que, entre outros aspectos, entende a noção de território como produto de um processo de subjetivação, fruto de “dobras”, dos agenciamentos dos fluxos, dos movimentos de imagem, de som, de palavras, de matérias, de sentimentos que caíram nas malhas de um poder. Neste sentido, não seria prudente nos perguntarmos se a nossa noção de natureza não seria ela já um desses agenciamentos funcionando como um dispositivo de poder? Vejo que muito se fala dela, a natureza, como uma categoria fixa, um território desde sempre constituído, como se houvesse um dentro e um fora, como se houvesse, ou tivesse havido, um momento radiante da natureza e do qual fizemos parte. Não sei e espero está enganado, mas isso me cheira a nostalgia do paraíso perdido, a velha busca religiosa para encontrar o caminho de volta aos braços do pai ou da mãe divinos. Ou ainda o velho discurso sobre a existência do “ópio do povo” figurado em diversos elementos alienantes da realidade, como se houvesse uma “realidade real” e uma “realidade falsa”. Matrix é encantador como peça de arte cinematográfica, mas não existe uma saída da “realidade falsa” e em seguida uma entrada ou volta a uma “realidade real”. Nunca saímos da realidade na qual nos encontramos, podemos sim, estarmos vivendo níveis diferentes de um momento ou época, mas não há um tal “ópio do povo”, ou seja, um momento ou situação no qual nos alienamos para em seguida deixarmos de ser e voltarmos a lucidez da realidade, de fato, a coisa é bem mais complicada: a realidade é o próprio ópio.
Gosto muita dessa fala do Foucault a respeito da noção de identidade e é com ela que termino:
A identidade é apenas um jogo (não um fato determinado), apenas um procedimento para favorecer relações, relações sociais e as relações de prazer sexual que criem novas amizades, então ela é útil. Mas se a identidade se torna o problema mais importante da existência (sexual ou qualquer outra), se as pessoas pensam que elas devem “desvendar” sua “identidade própria” e que esta identidade deva tornar-se a lei, o princípio, o código de sua existência (eu sou assim, sempre fui assim, nasci assim, assim serei para todo sempre), se a questão que se coloca continuamente é: “Isso está de acordo com minha identidade?” (com aquilo que eu sou), então eu penso que fizeram um retorno a uma forma de ética muito próxima à da heterossexualidade tradicional. Se devemos nos posicionar em relação à questão da identidade, temos que partir do fato de que somos seres únicos. Mas as relações que devemos estabelecer conosco mesmos não são relações de identidade (no sentido de já estarem determinada de forma definitiva para todo sempre), elas devem ser antes relações de diferenciação, de criação, de inovação. É muito chato ser sempre o mesmo. Nós não devemos excluir a identidade se é pelo viés desta identidade que as pessoas encontram seu prazer, mas não devemos considerar essa identidade como uma regra ética universal. (Existe sempre a possibilidade de ser outro, de me transformar em outro).


Alexsandro