De início é válido esclarecer que a noção de território aqui trabalhada tem na definição construída por Guattari a referência primeira:
“a noção de território é entendida aqui num sentido muito amplo, que ultrapassa o uso que dela fazem a etologia e a etnologia. Os seres existentes se organizam segundo territórios que o delimitam e os articulam aos outros existentes e aos fluxos cósmicos. O território pode ser relativo tanto a um espaço vivido, quando a um sistema percebido no seio de qual um sujeito se sente ‘em casa’. O território é sinônimo de apropriação, de subjetivação fechada sobre si mesma. Ele é o conjunto dos projetos e das representações nos quais vai desembocar, pragmaticamente, toda uma série de comportamentos, de investimentos, nos tempos e nos espaços sociais, culturais, estéticos, cognitivos.
A noção de território demandaria o estabelecimento de recortes. A linha do recorte estabelecerá uma fronteira que definirá um dentro e um fora. Tudo aquilo que é usado para definir o ‘dentro’, o espírito do ‘de dentro’, será usado para assegurar a permanência do ‘fora’. A fronteira estabelecida legitima a unificação política de um território. Um território definido e definidor: um território que passa a afetar e que circunscreve o estabelecimento de alteridades: afetividade territorializada estabelecendo padrões de sensações e sentimentos que devem ser vividos e experimentados; território definindo alteridades a partir das noções ‘dentro’ e ‘fora’.
Mas como nasce um território? Do e no emaranhado dos artifícios que dão forma ao seu discurso. Lembrando que o discurso que faz nascer um território é meta-histórico na medida em que faz uso de significações teleológicas que partem de um passado redentor para um futuro promissor. O território e a fronteira não possuem essência. A configuração que assumem é artificial. No movimento de territorialização, que pode ser de identificação ou de conceituação, tudo no entorno, tudo com que entra em contato será afetado.
Há os movimentos. Um território nasce dos movimentos. Movimentos de transformação. Eles são inevitáveis. Embora muito se lute para represá-los ou reprimi-los. Os movimentos de transformação se fazem pela e na destruição, na demolição, no desfazer, no diluir, no evaporar de certos mundos, de certas configurações culturais, de certas relações sociais, de certos sentidos. Sentidos que se vão, que se perdem, que deixam de ser, que somem, e no reverso, sentidos que vêm, se acham, que passam a ser, que aparecem. Um ambiente que se tornou ultrapassado para expressão de afetos. Afetos que requerem novos traçados, novos territórios. São afetos ganhando vida, assumindo a vida, dando vida. E no trajeto que segue, estratégias vão sendo requeridas, fronteiras vão sendo estabelecidas.
O estabelecimento de um território acontece tentando eliminar a alteridade. Como em um ato fágico, devorar para integrar. E para aqueles que não se territorializaram, a ação êmica, vomitar para expulsar. Questionar a fronteira é correr risco - o risco do estigma, da exclusão, de ser considerado não pertencente ao território.
Vale lembrar que tal sentimento de pertencimento não é algo inerente aos indivíduos, esta noção delineia-se a partir do processo de socialização, do processo de descoberta do ambiente cultural no qual o individuo se encontra inserido. Entretanto, não há garantias de que tal sentimento venha a ser vivido com toda fidelidade. Para que tal fidelidade venha se estabelecer todo um processo de (des)construção da imagem de si e, sobretudo, da imagem do outro, deve acontecer. Os comportamentos morais e afetivos definem e caracterizam o afeto dos sujeitos ao território. O problemático aqui é quando se começa a considerar como únicos possíveis os pontos de vista imediatos ligados a sua situação e as suas atividades próprias. Cria-se um estado de espírito no qual o sujeito pode deixa de compreender sua própria situação a partir do momento em que ele só compreende o território e a fronteira na perspectiva ‘do dentro’. Tanto elementos afetivos quantos intelectuais estão em jogo. O estabelecimento da fronteira pode significar o estabelecimento de um limite entre a percepção de si (o de dentro) e a percepção do outro (o de fora). Tal limite se encontra na percepção do outro, mais especificamente na ignorância, no desconhecimento do que o outro de fato representa e da importância do outro enquanto outro. Uma percepção auto-referencial que vai à direção de uma atitude de superioridade frente a outras sociedades e culturas a partir de uma imagem do outro, pejorativa e falsa.
A desqualificação do outro alimenta as mais diversas formas de preconceitos, racismos, fanatismos e xenofobias. O que alimenta tais atitudes é, sem dúvida, a incapacidade de compreender a complexa trama de elementos que envolvem a construção da alteridade, do seu conteúdo e do seu funcionamento. Havendo, por conseguinte, uma redução dos seus elementos componentes dentro de uma elaboração de visão de mundo extremamente centrada em um conteúdo moral. A incapacidade de compreender e de conceber a alteridade como uma invenção, como uma construção, pode levar a geração de um conteúdo moral que busca evitar qualquer esforço reflexivo, qualquer analise sobre as implicações de se viver sob um regime de fronteira. Esse conteúdo moral pode chegar às raias da crueldade, da brutalidade, do totalitarismo e do fascismo. Tal conteúdo moral quase sempre desqualifica os esforços do pensamento criterioso e analítico. Assim, a incapacidade de autocrítica, somada a condenação de qualquer tipo de crítica, fazem da fronteira um espaço de atitudes arrogantes, fundado em idéias preconcebidas, de circulação de discursos arbitrários, caprichosos e injustos.
Alexsandro