07/07/2010

Três lições copernicanas

Nicolau Copérnico (1473-1543), astrônomo polonês,
conhecido pela teoria heliocêntrica que havia sido descrita
por Aristarco de Samos, segundo a qual o Sol se encontrava
no centro do Universo e a Terra girava em torno deste.


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Parece fácil afirmar hoje que o Sol está no centro do Sistema Solar e que os planetas giram à sua volta em órbitas elípticas. Como poderíamos pensar diferentemente, visto que este é o arranjo mais óbvio de nossa vizinhança cósmica? Na verdade a coisa não é bem assim. O que vemos é o Sol girar em torno da Terra e não o oposto. Afinal, não é o sol que nasce no leste e se põe no oeste? Fazer a Terra girar em torno do Sol é, no mínimo, contra-intuitivo. Não é à toa que apenas em 1543, com a publicação do livro de Nicolau Copérnico, onde ele descreve o Sistema Solar com o Sol no centro, é que começou – lentamente – a ficar claro que nem sempre o que vemos ou percebemos do mundo é o que corresponde à realidade. Estranha essa idéia de que o arranjo do cosmo pode ser tão distinto daquilo que o bom senso ditaria.

Esta é a primeira lição copernicana: os sentidos podem construir uma realidade falsa se não tiverem a razão ao seu lado.

Por que Copérnico resolveu desafiar dois milênios de sabedoria, baseada na filosofia de Aristóteles? A igreja havia já adotado a descrição aristotélica do cosmo, onde a Terra ocupava o centro, sendo circundada pela Lua, Sol, planetas e estrelas. A parte mais oportuna deste arranjo cósmico para a igreja era a separação que Aristóteles fazia entre o mundo sublunar, onde as mudanças e transformações materiais podiam ocorrer, e o resto do cosmo, onde tudo era eternamente igual. A decadência humana era então associada a mudanças materiais (e carnais) perto da Terra, enquanto a perfeição ficava longe, na morada de Deus. Pôr o sol no centro era destruir este arranjo, pois transformava a Terra em mais um planeta e não no centro de mudanças e transformações. E o Sol, sendo perfeito e eterno não podia pertencer à subesfera da decadência. Para pôr o Sol no centro, era necessário criar uma nova física, em que a Terra e os planetas obedecessem os mesmos princípios. Dois motivos levaram Copérnico a dar esse passo, ambos baseados em um impulso estético. O primeiro, que os movimentos celestes deveriam ser em órbitas circulares e com velocidades constantes. Essa idéia era quase que sagrada, um princípio criado por Platão, o mestre de Aristóteles. Por que o círculo? Pois ele, sendo a figura geométrica mais perfeita, onde todos os pontos são equivalentes, deveria, sem dúvida, ter sido a escolha do Demiurgo, a divindade grega que arquitetou o cosmo e suas estruturas. O segundo princípio estético usado por Copérnico era, claro, o arranjo dos planetas em torno do Sol. Conhecia-se já, na época, o período orbital dos planetas, o tempo que eles demoravam para dar uma volta completa em torno do Sol. Portanto, raciocinou Copérnico, basta arranjá-los em ordem crescente, de modo que Mercúrio, de período mais curto, fique mais perto do Sol e Saturno de período mais longo, fique mais longe (não se conheciam ainda os outros planetas Urano, Netuno e Plutão, invisíveis a olho nu). Com estes princípios estéticos, Copérnico criou um novo arranjo do Sistema Solar, desafiando o pensamento aristotélico, mesmo sem ter qualquer prova de que suas idéias estavam certas.

Esta é a segunda lição copernicana: a inspiração para a ciência muitas vezes é guiada por princípios estéticos.

Mas estética não garante precisão. Apenas através de uma confirmação direta, baseada em medidas e sua análise quantitativa, é que podemos julgar ou não a validade de uma hipótese sobre a natureza, por mais atraente ou elegante que ela seja. A estética é uma sedutora ambígua, fundamental e traiçoeira. Passaram-se mais de 50 anos até que as idéias copernicanas começaram a ser aceitas. Por que toda a demora? Será que os astrônomos da época eram incompetentes? A virada começou com Galileu e Kepler no início do século 17, ambos grandes defensores de Copérnico, por motivos diferentes. A razão foi a falta de confirmação observacional dessas idéias, aliada a um número relativamente pequeno de pessoas trabalhando em astronomia na época. Mais ainda, a posição da igreja e dos luteranos também não ajudava muito. Os seguidores de Copérnico tiveram um trabalho muito maior do o próprio, pois eles tiveram de testar as idéias e aprimorá-las, como foi o caso de Kepler com as órbitas elípticas, que seriam extremamente "feias" para Copérnico.

Esta é a terceira lição copernicana: em ciência, como em qualquer outra atividade criativa, ninguém pode trabalhar sozinho. O conhecimento é como uma corrente em que cada idéia é um elo, uns mais fracos, outros mais fortes, forjados todos pela nossa curiosidade.

Marcelo Gleiser


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